segunda-feira, 29 de abril de 2019

BOLO DE NATAL


Papai adorava ler Karl Marx e mamãe encantava-se com a leitura de Allan Kardec. Eu, aos oito anos de idade, sem entender absolutamente nada do conteúdo daqueles “estranhos” livros, relia minha cartilha escolar do curso primário, chamada Caminho Suave e alguns gibis do Zorro e do Fantasma que eram sutilmente  escondidos entre as páginas da cartilha para não serem vistos por mamãe e evitar uma boa surra de vara de marmelo.

    Na véspera do Natal de 1.963, papai saiu de casa, no pacato bairro Parada Inglesa-SP para participar de uma importante reunião no Sindicato de Brinquedos e Instrumentos Musicais, que ficava na Av.Celso Garcia, no Brás-Sp e prometeu a mamãe que voltaria para a confraternização natalina.

    No início da noite mamãe começou a fazer um bolo de morango e quando terminou, colocou o bolo cuidadosamente sobre a mesa e disse enfaticamente que só comeríamos o bolo quando papai chegasse.

    Desolado, sentei-me diante do bolo e com as mãos no queixo e os cotovelos sobre a mesa, comecei a sussurrar uma oração para Jesus pedindo o retorno de papai o mais breve possível.

    O repetitivo “tic-tac” do relógio cuco que ficava na cozinha e alguns estampidos de fogos que iluminavam o céu, anunciavam a proximidade do dia do nascimento de Jesus e deixava-me inquieto e entre uma olhada de soslaio para mamãe e outra para a porta da cozinha para ver se papai estava chegando, colocava o dedo indicador no bolo e levava-o rapidamente até a boca.

    Faltando alguns minutos para meia-noite, papai chegou com um embrulho embaixo do braço e eu iluminei toda a cozinha com um inefável sorriso de Felicidade. Iria comer o bolo!

    Papai deu-me o embrulho acompanhado de um carinhoso beijo na testa e quando eu o abri, meus olhos marejaram diante de uma linda bola de capotão número cinco com um delicioso cheiro de couro cru. Retribuí o presente com um forte abraço e vários beijos no seu rosto.

    Posicionamo-nos ao redor da mesa e demos as mãos e mamãe iniciou uma “interminável” prece agradecendo a tudo e a todos e quando terminou, abraçamo-nos desejando Feliz Natal.

     O bolo de morango com vários furinhos produzidos pelos meus ágeis dedinhos finalmente foi cortado e servido a todos.
     Adormeci num sofá velho, na varanda, todo lambuzado de bolo, abraçado a bola de capotão, escutando o suave “tic-tac” do relógio cuco e o barulho de alguns pingos de chuva que começara a cair... Era Natal! 

domingo, 28 de abril de 2019

A ARQUITETA


 E desde que a pequena Caroline foi abandona pelos pais que a deixaram com a avó chamada Alice o grande sofrimento fez-se presente em todos os momentos da menina Carol que passou a viver sempre ao lado da querida e protetora avó.
        No pequeno quartinho alugado nos fundos de um grande cortiço, o exíguo dinheiro de uma pensão da avó Alice, uma boneca e duas camas separavam o grande sonho de Carol e sua avó: Morar em uma residência digna e sempre a garotinha de apenas seis anos dizia:
- Olha vó Alice, quando eu crescer, vou ser uma construtora de casas e construirei uma linda casa pra gente morar!
Vó Alice passava as mãos pelos lindos cabelos negros da netinha Carol e dizia:
- Dorme minha querida e sonha, porque sonhar é necessário e faz bem pra alma.
     No outro dia lá estava a vó Alice arrumando, limpando uma residência para ganhar o sustento para amparar as necessidades do cotidiano, e como diarista sempre levava a pequena Carol que ficava a admirar os pequenos livros comprados em sebos da periferia e quando abria uma página do livro e aparecia uma casa muito bonita ela saia correndo e ia mostrar para a vó Alice e dizia:
- Olha Vó, nossa casa!
Vovó Alice balançava a cabeça, sorria e dizia:
- Linda muito linda, começa a ler outra história minha querida, esta casa é muito luxuosa pra ser da gente!
- Carol encolhia-se num cantinho da sala que estava sendo limpa e pensava que um dia seria muito inteligente para construir uma linda casa como aquela que estava no livro.
        O tempo foi passando e Carol começou a estudar em uma escola do bairro e sempre seu maior interesse foi desenhar casas e sempre que a professora perguntava o porquê tanto interesse por casas, Carol respondia:
- Porque não temos casa para morar e vou construir uma casa para minha avó Alice!
        O ensino fundamental foi completado com grande êxito e os elogios dos professores sempre enaltecendo a grande facilidade em desenhos da pequena Carol deixavam vó Alice muito feliz.
        O Ensino médio foi totalmente estudado em uma escola Federal na área de Edificações e finalmente após grandes projetos e profundo estudo começou a trabalhar em uma grande Construtora da cidade de São Paulo.
        A vida de cursinho à noite após o trabalho visando fazer uma excelente Faculdade de Arquitetura fez despertar o interesse pela aquela inteligente menina do dono da Construtora que fez uma proposta para Carol.
- Olha garota, por esta construtora já passaram vários estudantes de arquitetura, edificações, engenheiros e peões, mas sua obstinação nos surpreende muito e a melhor coisa que temos que fazer é financiar os seus estudos e a partir de amanhã você não necessita mais vir trabalhar, está despedida!
Os olhos de Carol lacrimejaram e quando ela foi saindo entre soluços o dono da Construtora pediu que ela não ficasse triste, pois a empresa ajudaria naquilo que fosse necessário. Uma bolsa de estudo até o término da Faculdade de Arquitetura e não haveria mais a necessidade de trabalhar todos os dias, apenas quando necessitassem de algum apoio.
        Carol prestou o vestibular e passou em primeiro lugar e começou o curso em uma Faculdade de Arquitetura de primeira linha na cidade de São Paulo e durante os anos que foram passando conheceu Paulo, também estudante de Arquitetura e oriundo de uma família muito rica da cidade de São Paulo e entre as maquetes construídas sempre sobravam tempo para uma boa conversa entre os dois.
        Ao término do terceiro ano do curso já estavam namorando e arquitetando grandes e mirabolantes planos para o futuro e foi quando Paulo fez um pedido para Carol:
- Carol, que tal ao final do nosso curso ir morar nos Estados Unidos, em Los Angeles?
Carol riu e disse: Sim poderemos ir, após casarmos e construirmos uma linda casa para minha vó Alice!
O tempo foi passando e Carol e Paulo se formaram com grande pompa, grandes méritos e vários elogios dos grandes mestres de arquitetura por terem sidos maravilhosos alunos que tanto ajudaram em grandes projetos de pequenas moradias populares.
        O casamento entre Carol e Paulo aconteceu e o grande sonho de Carol começou a ser construída em um bairro da cidade de São Paulo, uma linda casa para avó Alice e após a casa estar totalmente construída e entregue a querida vó Alice a mesma disse:
- Olha Carol, muito obrigado pela linda casa construída, mas meu maior sonho mesmo é passar meus últimos dias ao seu lado em qualquer parte deste planeta, pois eu te amo muito!
Partiram para Los Angeles, Califórnia, Estados Unidos e montaram uma enorme construtora de piscinas em Beverly Hills, hoje Carol deve ter seus quarenta anos e Paulo uns trinta e sete anos, apenas um filhinho chamado John e a linda e caridosa avó Alice seus oitenta e sete anos que todas as manhãs sentam-se em frente da grande mansão em que moram e diz:
- Carol, onde está aquele livrinho que comprei pra você num sebo, para eu mostrar para o John?

Entre abraços e beijos são servidos pelos empregados da mansão enquanto aguardam os empregados da grande construtora chegarem para mais um dia de trabalho.


sexta-feira, 26 de abril de 2019

SONHO NAUFRAGADO


Aos dezessete anos de idade eu não conhecia o mar, nunca tinha ido a uma praia, somente conhecia lagoas, piscinas e rios, mas o mar jamais tinha visto de perto, apenas pela velha televisão que tínhamos em casa em preto e branco, marca videobel.
Aos sábados eu não trabalhava e a tarde adorava assistir filmes de aventuras sobre o mar, povoados distantes perdidos no mundo e foi em um desses sábados que assistindo uma reportagem sobre marinheiros embarcando em um grande navio que me despertou uma vontade enorme de ser marinheiro.
Assim que terminou a reportagem dei um pulo enorme da poltrona e gritei bem alto:
- Já sei, vou ser marinheiro e viajar pelo mundo e voltarei somente daqui a alguns anos para este pedaço de chão!
Minha mãe e meu pai arregalaram os olhos de espanto, caminharam lentamente até mim e disseram:
Ora garoto, sabemos que você tem um espírito aventureiro, mas querer entrar na marinha de guerra já é demais, vai descansar um pouco quem sabe você muda de ideia.
A mente borbulhava em pensamentos em querer ser marinheiro a qualquer custo e assim ao anoitecer fui dormir e sonhei a noite toda que eu estava embarcando em um grande navio de guerra para um local ignorado. Eram centenas de grumetes todos uniformizados de branco embarcando no porto e despedindo-se dos familiares que abanavam lenços entre lágrimas.
No outro dia, durante o café matinal que fazíamos aos domingos reunidos em família comuniquei que iria alistar-me na marinha de guerra quando chegasse a data específica do começo do alistamento.
Procurei saber se eu podia alistar-me na cidade de São Paulo e fiquei sabendo que poderia alistar-me somente na cidade de Santos e assim os dias foram passando e eis que o dia do começo do alistamento militar chegou e eu já estava com todos os documentos preparados para poder embarcar na velha rodoviária de São Paulo que naquela época ficava na estação da Luz, no centro velho de São Paulo.
Anotei o nome do quartel, o endereço, datilografei enfiei no bolso da velha calça Jeans e desci a serra com um sentimento de vitória em poder sentir que meus sonhos começavam a levantar âncoras.
 Apresentei-me no quartel e entreguei todos os documentos a um oficial que pediu para eu aguardar que iriamos fazer uma prova para poder aferir o nosso conhecimento e em seguida teríamos que voltar para fazer o exame médico em outro dia.
Entre idas e vindas de São Paulo para Santos foram umas quatro viagens após a primeira viagem eu já não pagava mais a passagem de ônibus, apenas mostrava o alistamento militar e seguia viagem gratuitamente.
As medidas da farda foram tiradas, os números dos sapatos anotados e estava tudo certo para poder engajar na marinha e foi quando fui informado que iria servir a marinha em uma cidade chamada Ladário como grumete no estado do Mato Grosso do Sul.
Fiquei super espantado, pois pensava que serviria em Santos ou Rio de Janeiro e fui falar com o comandante e ele deu um sorriso debochado e disse: Ora soldado, aqui você apenas obedece e já está definido para onde você vai ou prefere ir para o exército?
Um pouco abalado pelas circunstâncias disse que gostaria de ir para o exército e ele pediu para eu esperar que faria a minha transferência. Aguardei alguns minutos e foi quando o comandante apareceu com uma folha pedindo para eu apresentar-me ao exército que ficava no Parque Dom Pedro II. Passados alguns dias apresentei-me no exército e deram-me um atestado de excesso de contingente e meu sonho tinha acabado de naufragar naquele instante.

quinta-feira, 25 de abril de 2019

O PRESENTE


Todas as tardes quando eu chegava do estafante serviço tinha o hábito de desintoxicar a mente. Após um demorado banho, vestia um velho calção de banho e ficava várias horas na varanda lendo um clássico da literatura, bebericando um bom copo vinho gelado e  apreciando a bela paisagem da periferia.   Eu morava num sobrado que ficava na parte mais alta do bairro e da minha varanda tinha uma visão panorâmica espetacular.  O clima era perfeito, uma confortável cadeira de descanso colocada estrategicamente para observar todos os ângulos e cantos da bela paisagem de várias casas sem o reboco, pois o bairro ainda estava sendo formado e também tinha uma visão maravilhosa do Metrô. Uma mesinha de centro, algumas samambaias penduradas e um canarinho que cantava todo o tempo.
           Foi desta maravilhosa varanda que comecei a esboçar minhas primeiras pífias crônicas. Escrevia as crônicas num caderno e após escritas as mesmas eram guardas a sete chaves para ninguém lê-las, pois tinha receio que observassem meus erros de português que naquela época eram muitos.
            Nossa vizinha era uma senhora muito pobrezinha e morava numa casa muito pequena e criava uma criancinha de três anos de idade e do alto da minha varanda observava todos os movimentos da pequena criança correndo pra cá, correndo pra lá, sempre sozinha, às vezes parava e começava fazer pequenos buracos no chão de terra e repentinamente levantava-se e saía correndo atrás de uma galinha e era muito divertido o diálogo com a galinha que ela carinhosamente chamava de cocó.
             Minha vida estava muito tranquila, tinha um bom emprego, uma ótima casa pra morar, boa comida, uma maravilhosa família e aquela confortável varanda para todos os meus devaneios mentais vespertinos.
             Várias vezes saia da varanda com um peso enorme no coração e ficava imaginando: Enquanto estamos vivendo maravilhosamente bem existia aquela garotinha que talvez estivesse passando fome e resolvi falar com minha esposa para pesquisar como vivia aquela garotinha, quem era e se a mesma estava precisando de alguma “coisa” e prontifiquei-me a ajudar naquilo que fosse necessário.
             No outro dia quando estava na varanda, a porta abriu-se vagarosamente e minha esposa apareceu segurando a mão da menininha e apresentou-me: Aqui está sua filha Luiz! Levantei-me um pouco assustado, caminhei vagarosamente até a linda criança e dei um beijinho na criança e comecei a conversar com a mesma até que minha esposa disse:
- Esta é a Amanda, o pai está pelo mundo e a mãe mora muito distante daqui e ela é criada pela avó com todas as dificuldades de uma pequena renda deixada pelo marido recentemente falecido.
         Amanda era linda, franzina, cabelos todo cacheadinho, moreninha e uns olhos alegres, cheio de esperança que a vida um dia sorriria para ela.
Meus olhos lacrimejaram, corri até o armário e peguei uma caixa de chocolates e dei a ela que ficou muito feliz. A partir daquele dia quase todos os dias via Amanda e meu carinho pela aquela menininha foi crescendo imensamente, pois além de ser muito bonitinha, era educada e chamava-me carinhosamente de Pai.
          Começamos a ajudar Amanda, comprando roupas, enviando cestas básicas para sua avó, lindas sandálias e passados alguns meses Amanda já fazia parte da nossa família e ficava várias horas correndo pela sala, cozinha e brincando de videogame e às vezes colocava a cabecinha na porta da varanda e dizia carinhosamente: Oooooi Papai! Passava a mão na sua cabeça e ela saia correndo dizendo para minha esposa que eu queria pegá-la por ter atrapalhado minhas leituras.
           Às vezes brincava com ela dizendo se ela não parasse de correr pela casa toda iria levá-la até o metrô Sé e então rodaria a mesma inúmeras vezes e largaria ela lá. Ela sorria angelicalmente e dizia: Mas.. papai vamos agora! Vai ser muito legal a gente brincar de roda-roda no metrô e então ela sorria e saia correndo novamente pela casa toda e ia contar pra esposa que iríamos brincar de roda-roda no metrô Sé! Ríamos muito daquele momento.
           Após um farto jantar perguntei a minha patroa se não seria possível adotar aquela menininha e ela vir morar conosco e ela ficou de pensar e falar com a avó para ver se era possível.
           O mês de dezembro começara e a lista de presentes natalinos já estava sendo montada e nunca nos esquecíamos da querida Amanda. Após um maravilhoso natal repleto de presentes e uma mesa divina com comidas de todas as espécies aproximava-se meu aniversário que era dia 27 de dezembro e todos estavam programando dar me um maravilho presente e então a ansiedade fazia-se presente constantemente.
           No dia do meu aniversário minha esposa ligou-me e pediu para eu ir direto pra casa, pois iríamos sair para comemorar meu aniversário e assim foi feito.
           Cheguei em casa e fiquei um pouco assustado, pois todas as luzes estavam apagadas e quando abri a porta da sala, acendeu-se a luz e quase todos os meus amigos começaram a cantar Parabéns para mim. Um lindo bolo disposto numa elegante mesa da sala, várias taças de cristal dispostas sobre a mesa e um vinho importado completava o maravilhoso cenário. Foi quando minha esposa pediu para vendar meus olhos que ela ia trazer meu presente e vendou meus olhos e logo em seguida ela pediu para eu abrir e ver o lindo presente que eu tinha ganhado: Abri os olhos e não vi absolutamente nada e a esposa falou para mim, olha pra baixo e veja seu lindo presente! Quando avistei Amanda com os bracinhos esticados querendo um abraço e dizendo: Sou eu seu presente Papai! Feliz Aniversário! Quase tive um enfarto de tanta emoção, abracei Amanda e dei um carinhoso beijo no seu rostinho. Tínhamos conseguido que Amanda viesse morar conosco, aquele era meu presente: Uma filha! Foi criada com muito carinho enquanto esteve conosco e passados algum tempo voltou para casa da avó. Presente maravilhoso, devidamente guardado a sete chaves na minha memória e agora todos sabemos.


AS "PELADAS" DO PÁTIO DO COLÉGIO


Em 1.971 trabalhava como office-boy numa companhia de seguros na Praça Padre Manoel da Nóbrega, perto da Praça da Sé, no centro de São Paulo. Na hora do almoço, após saborear a excelente refeição preparada com muito esmero por Dona Maria, que era a cozinheira da Cia. onde eu trabalhava, nós office-boys descíamos do vigésimo primeiro andar para dar umas voltas e apreciar o que existia de melhor naquela época: “A beleza da mulher paulistana".
       Ficávamos sentados num banco existente no pátio do Colégio apreciando todas as meninas que passavam apressadas, vindo não sei de onde e indo para um lugar ignorado por nós, talvez algum banco, loja. Num determinado dia o Artur levou uma bola de futebol carcomida e propôs fazermos uma "pelada" no Pátio do Colégio, inicialmente ficamos um tanto apreensivos, eu os colegas achávamos que poderíamos ser presos, mas aceitamos e dividimo-nos em dois grupos e começamos a dar os primeiros chutes na velha bola de futebol.
        Com o passar dos dias, a "pelada" foi chamando atenção de outros office-boys que passavam apressadamente pelo pátio e pediam para participar, nem que fosse só um pouquinho e todos eram aceitos, a única restrição que fazíamos era que tinha que ser office-boy. Após algumas semanas surrando a bola, sempre no horário do almoço, nossa "pelada" já era conhecida por alguns transeuntes e uma pequena e ruidosa torcida composta de camelôs, engraxates, mendigos e alguns vagabundos que perambulavam pela redondeza que paravam para observar aquele bando de moleques sem juízo correndo em pleno centro da maior cidade da América Latina.
         Dois garotos tiravam "par ou ímpar" e começavam a escolher os "craques" que iriam compor o time, geralmente os garotos com porte físico avantajado tinham a preferência e rapidamente eram os primeiros a serem escolhidos, ficando os "miudinhos" e raquíticos para serem escolhidos no final ou aceitavam o ingrato convite para ser gandula.
         O jogo de futebol era muito divertido, pois tudo era improvisado, desde as traves que poderia ser dois pedaços de pedras subtraídas da construção do metrô da Praça da Sé, que estava sendo construído ou uma maleta 007 de algum office-boy ou mesmo um saco de roupas sujas de qualquer mendigo torcedor.
         Inicialmente não existia juiz, mas com o passar dos dias e aumentando o número de jogadores, aceitamos a sugestão de alguns torcedores e resolvemos "escalar" um juiz. O mais difícil era convencer um garoto office-boy a aceitar ser juiz. Cargo tão decisivo e perigoso, visto que qualquer desentendimento era fácil observar o juiz levando alguns cascudos, pegar sua maleta 007 e sair xingando a todos e ir embora; outro dia voltava, mas não aceitava ser juiz de jeito algum.
         Em toda partida de futebol, escolhe-se o melhor jogador em campo, na nossa "pelada" os torcedores escolhiam o pior jogador do Pátio e era dificílimo a escolha, pois um era pior que o outro, éramos verdadeiros "pernas de pau", mas sempre existia o piorzinho de todos e não me envergonho de ter sido escolhido algumas vezes, poucas vezes, mas... “Esse garoto que era escolhido “o pior” era zombado em plena rua aos gritos por outros office-boys e mesmo dentro de algum banco da Rua XV de Novembro, enquanto aguardava pacientemente na quilométrica fila podia ouvir-se” E aí pior!”“. Quando tinha sido escolhido, nem ligava, fazia de conta que não era comigo, mas que dava um "odiozinho" dava.
          Aconteceu uma partida inesquecível em que participaram quarenta e quatro office-boys, vinte e dois de cada lado, acho que todos os office-boys dos escritórios da redondeza estavam lá naquele dia, tinha mais jogadores que torcedores no Pátio, infelizmente neste dia a partida foi interrompida por policiais de trânsito, que vendo aquele bando de garotos atrás de uma bola resolveram parar para observar o que estava acontecendo. Paralisaram nossa partida de futebol e tentamos explicar que era apenas uma "pelada", que não estávamos prejudicando ninguém, a não ser algumas boladas que alguns transeuntes levavam, é claro, que a gente era trabalhador (office-boys), etc., etc. Não houve jeito, confiscaram nossa bola e pediram delicadamente para que voltássemos para nossos escritórios.
           Mas a gente não se preocupava, pois no outro dia outro colega trazia outra bola e lá estávamos nós correndo pra lá e pra cá novamente, mas sempre de olho nos policiais de trânsito.
            Estava chegando o final do ano e resolvemos promover um mini campeonato entre nós office-boys dos escritórios da região e decidimos que o mesmo seria realizado em pleno Pátio do Colégio e somente office-boys poderiam participar. Ficou estabelecido entre nós que o campeão ganharia um troféu, uma quantia em dinheiro e seria necessário os times ter camisetas próprias com o nome do escritório. Quando o campeonato começou era muito lindo ver a molecada abandonada dentro de lindas camisetas ostentando o nome do escritório, soubemos mais tarde que até alguns supervisores e gerentes de escritórios patrocinaram algumas camisetas, mas pediam para não serem identificados, pois poderiam ser demitidos pela ilegalidade do campeonato e pelo local ser um espaço público.
            Faltando alguns dias para o dia do Natal já estava definido os dois times finalistas, os jogos aconteceram em duas semanas, após várias partidas acirradas, no estilo "perdeu, cai fora", o tradicional "mata-mata".  Os dois times finalistas eram o nosso e de um outro escritório pertencente a um banco da Rua Boa Vista.
Golaço, mandando a bola na Rua General Carneiro, quase acertando a cabeça de um camelô. No segundo tempo novamente o Artur nos presenteou com outro gol maravilhoso. Resultado final, ganhamos a partida por 2x0. Éramos Campeão! Abraços misturavam-se com gritos de: É Campeão!
            Atravessamos a Rua XV de Novembro aos gritos de "É Campeão!" e fomos comemorar nossa vitória comendo sanduíches de linguiça calabresa com guaraná na Rua do Tesouro.
             Lá estava nosso troféu em cima do balcão de vidro e a cada mordida em que eu dava no meu sanduíche, olhava para o troféu com um orgulho danado em ter sido Campeão. Campeão da "pelada" do Pátio do Colégio.

quarta-feira, 24 de abril de 2019

PIPAS NO AR NAS MANHÃS DE SÁBADOS


Em 1970, éramos adolescentes e morávamos no bairro da Cidade A. E. Carvalho e o nosso passatempo favorito era confeccionar e empinar pipas nas manhãs de sábados.
Nosso encontro acontecia nas manhãs de sábados na área de entrada da casa do meu amigo Israel.
O ritual alegre era acompanhado pela garotada da periferia que tentava descobrir como fazer belas e multicoloridas pipas.
Tudo era feito com muita descontração e alegria, desde o preparo da cola feita com farinha de trigo que eu levava de casa e que exigia muito esmero para não sujar o belíssimo fogão da dona Ondina, mãe do meu colega Israel.
As folhas de papel de seda eram adquiridas na lojinha da dona Matilde, escolhidas cuidadosamente entre as diversas cores dispostas na prateleira.
Existia um momento que exigia grande concentração, era quando começávamos a “afinar” as varetas que eram retiradas do bambu do varal de roupas da dona Ondina. Nesse momento, até que adquirisse destreza com a afiadíssima faca dialogávamos sobre as novas namoradinhas, os estudos no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, que se localizava em Itaquera e sobre o serviço como Office-boy numa Cia. de Seguros no centro de São Paulo.
O grande prazer completava-se por estar ao lado do amigo que não via há uma semana e poder detalhar o perfil da nova namorada que trocávamos assim como éramos trocados frequentemente.
Às vezes éramos obrigados a abandonar nossa área de lazer momentaneamente, pois dona Ondina queria varrer a mesma, o que ocasionava um tempo de espera encostados no velho carro Ford semidesmontado pelo Sr. Luís, pai do meu amigo, que era mecânico. Nesse momento passava o Zé Roque, irmão do meu amigo e parava na nossa frente com algumas peças de televisão na mão, pois o mesmo tinha uma oficina de conserto no quintal, e ficava zombando da nossa capacidade de confeccionar pipas. Gargalhadas espalhadas pelo ar entrecortadas pelos raios de Sol da bela manhã de sábado completava a nossa felicidade com a chegada do Lalá  com seu tradicional assobio chamando sua namorada que era a irmã do Israel. Saia toda perfumada, sorrindo e pisando cuidadosamente sobre as pipas para não amassá-las. Abraçavam-se carinhosamente e nós abaixávamos a cabeça concentrados na confecção da nossa namorada, que era a pipa.
Constantemente olhávamos o céu azul e a nossa maior preocupação era com o vento e entre a confecção das pipas e a eterna paciência em fazer aquelas “rabiolas” quilométricas, molhávamos o dedo com saliva e expunha-o ao vento para saber qual a direção que o mesmo soprava e qual era a sua intensidade. Dessa maneira tínhamos uma vaga noção por onde nossas pipas e nossos pensamentos voariam.
O vento da periferia sempre era bondoso conosco e jamais deixava de soprar aos sábados de manhã e às vezes trazia o aroma agradabilíssimo do café coado pela dona Ondina que era servido em xícaras de porcelana pelo Lalá e sua linda namorada. Sempre sorrindo e desejando-nos bons ventos.
Talvez por não existirem prédios, o vento soprava uma agradável brisa, na quantidade exata às nossas expectativas e aos nossos sonhos de adolescente, e soprava em quase todas as direções.
Fazíamos as pipas com perfeição e elas raramente deixavam de voar.
Tínhamos uma brincadeira maravilhosa que consistia em dar nomes às nossas pipas e geralmente ganhavam nomes da última namorada e assim que o mesmo ganhava o céu ficávamos imaginando subir junto com eles e ficarmos olhando lá de cima tudo o que tinha acontecido, acontecia ou iria acontecer no nosso querido bairro Cidade A. E. Carvalho.
Havia sábados em que o vento soprava em direção ao bairro de Itaquera e nesses sábados nossos pensamentos avistavam cenas e situações indescritíveis. Lá de cima podíamos avistar a padaria com sua enorme máquina de assar frangos, pessoas saindo com saquinhos de pães, carros com o volume do rádio um pouco acima do normal tocando músicas de Roberto Carlos, Caetano Veloso, Os Beatles e Morris Albert cantando “Feelings”. Olhando atentamente poderia observar minha caixa de engraxar sapatos que outrora colocava em frente à padaria e ficava aguardando pacientemente os fregueses.
O ponto de ônibus em frente à padaria, e motoristas e cobradores sorrindo entre um gole de café, uma coxinha comida e um cigarro aceso. Pessoas entrando pela porta traseira e o ônibus saindo vagarosamente com motoristas com óculos escuros acenando aos companheiros com destino à Praça Clovis Bevilaqua. Viagem longa que nossas pipas não conseguiam acompanhar.
Observava crianças correndo alegremente, pelo pátio da escola Milton Cruzeiro durante o recreio e o ônibus Mogi-Parque D.Pedro II que passava em alta velocidade deixando-nos atônitos.
O vento mudava um pouco a direção e de lá de cima enxergava minha mãe e outras mães do bairro lavando roupas na mina e conversando sobre o sofrido cotidiano. Enquanto as roupas eram “quaradas” pelo tempo de trocar uma receita de bolo ou reclamar do custo de vida que já naquela época fazia-se presente.
Eis que a pipa e os nossos pensamentos pairavam sobre a igreja do bairro e podíamos deliciar-nos com a tradicional quermesse onde recebia as meninas com seus cabelos cortados “à Chanel”, devidamente arrumados com “laquê” e trajando lindos vestidos rodados coloridos e os meninos trajando calças “boca de sino” com cintura alta, parecendo um toureiro da periferia, e suas inconfundíveis camisetas “volta ao mundo” ou “gola olímpica”.
Sentia o aroma dos bolinhos caipiras preparados pelas mães do bairro e avistava barracas coloridas, que ajudávamos a montar, que abrigavam diversos jogos e vendas de guloseimas. As meninas eram vigiadas constantemente pelas mães ou irmãos que não permitiam beijos ou abraços, o máximo era uma piscada bem longe dos olhos severos dos pais de antigamente.
O alto-falante sussurrando uma inaudível música de Nelson Ned entrecortada pela voz rouca do amigo Israel que era o locutor oficial da quermesse, anunciando o início do jogo de bingo que jamais conseguira ganhar, completava a paisagem.
O barulho estridente do trem que fazia o trajeto Brás-Mogi das Cruzes afastava os namorados que trocavam presentes na véspera do Natal.
O vento começava a parar de soprar e era hora de recolher as pipas, nossas imaginações e nossos sonhos e retornar às nossas casas, depois de um abraço e um aperto de mão. Estávamos novamente na terra e ficávamos torcendo para que a semana passasse rápida e o vento mudasse de direção para que pudéssemos nos encontrar e avistar novos lugares e acontecimentos do pacato bairro da Cidade A. E. Carvalho.
Um passado não muito distante que ganhara as alturas através da nossa criatividade e amizade sincera e que deixou muitas saudades de um tempo em que dávamos vazão a nossa imaginação de adolescente, através de uma pipa, uma pipa nas manhãs de sábados.
Esta é uma pequena homenagem ao meu amigo Israel Brienzo que faz exatamente uns trinta anos que não vejo. Soube que anda morando lá pelas “bandas” do Norte do Paraná. Abraços, amigo, e saiba que até hoje me lembro das lindas namoradas e pipas que tanto empinamos juntos.

SOLIDÃO E LEITURA



Após breve estadia na casa da minha tia em Guarulhos, no ano de 2.000, segui meu caminho por quartos de cortiços e pensões escuras, vivendo miseravelmente e comendo em restaurantes de um real, longe da maravilhosa tecnologia, sem recursos financeiros para comprar um simples livro num sebo da vida e para fugir um pouco da realidade do cotidiano comecei a ler desesperadamente  tentando achar algum lugar no mundo, nos castelos medievais, na linda cidade de Macondo do livro  "Cem anos de Solidão" de Gabriel Garcia Marques ou talvez acompanhar nosso herói Dom Quixote ou  morar na pensão onde morava Clarissa de Érico Veríssimo.
Foram vários livros lidos e inúmeras visitas a biblioteca do Seródio. Lia todos os dias aproximadamente umas oito horas, sempre à noite, quando chegava do serviço ficava até às seis horas da manhã lendo, lendo e lendo.
         Eu estava vivendo de um sonho, o sonho da leitura e da maravilhosa literatura, quanto mais eu lia mais queria ler e assim conheci um pouco da obra e vida do nosso maior escritor brasileiro Machado de Assis. Sentia-me oprimido diante de tantas crônicas maravilhosas, tantos escritores sapientíssimos e resolvi avançar um pouco mais e comecei a ler grandes clássicos da literatura universal até que um livro mudou minha vida e minha maneira de pensar sobre tudo e sobre todos.
          Num determinado dia minha filha chegou em casa e disse que tinha uma ótima dica de leitura passada por professores da faculdade e indicou-me “Os miseráveis” de Victor Hugo. Comecei a ler o livro e fiquei apaixonado pela leitura e quanto mais lia mais emotivo ficava, cheguei a alguns momentos a chorar e só ai percebi o tanto quanto um livro pode emocionar um leitor. Terminei a leitura dos Miseráveis e senti-me preparado para começar a escrever alguns pífios textos e sempre escrevia e guardava-os, com receio que alguém visse e pudesse apontar algum erro de português.
          A ousadia fez-me conhecer um pouco da obra de Fiodor Dostoievski, autor russo, o Machado de Assis dos Russos, simplesmente maravilhosas as obras. Mas... infelizmente comecei a ler um pouco tarde, somente aos quarenta anos de idade, se soubesse o prazer que uma leitura proporciona começaria a ler livros quando criança, bem criança, mas como diz o “ditado popular” antes tarde do que nunca, começamos, agora o difícil é parar. Cada dia que passa sinto uma necessidade enorme de escrever algo e ler um pouquinho mais.  Enquanto conseguir mover os dedos e enxergar seguirei escrevendo sobre emoções vividas e fatos passados e sempre acompanhando a evolução educacional da minha netinha, pois em breve será ela que lerá para mim e eu ditarei algumas poucas crônicas perdidas no fundo dos poucos neurônios carcomidos pelo tempo e pela vida. Fechar os olhos e poder dizer com dignidade: Valeu a pena viver... e ler...e escrever. “Tá escrito” leiam! O quê?

CARTA DA NETINHA PARA O VOVÔ.


Querido Vovô, 

                Já faz tempo que ando querendo escrever uma cartinha para o senhor, mas o meu “tempinho” com brincadeiras tem impedido esta árdua tarefa. Mas hoje me sobrou um tempinho e decidi escrever algumas palavras do meu pequeno vocabulário, muito ensinado pelo senhor, por mamãe, por titio e pelas tias da escolinha que tanto amo para dizer o que meu coraçãozinho anda muito feliz pela sua presença entre nós.
                 Não se assuste com algumas verdades e outras “mentirinhas” bem características da gente que tem apenas três aninhos. Tenho notado seu esforço em tentar educar-me da sua maneira um pouco arcaica, mas tenho prestado muita atenção e sinto que o sr.procura orientar-me meigamente e a sua paciência é realmente surpreendente.
                Não fique zangado comigo não, quando derrubo comida no chão, pois como o senhor sabe minha coordenação motora ainda não é muito boa.
               Obrigada por deixar-me pular alegremente sobre a cama da mamãe e ainda o senhor dizer que assim que ela chegar é para eu parar, tenho tentado parar, mas...como o senhor sabe, às vezes fico muito empolgada e mamãe dá algumas broncas e vejo que o senhor sorri marotamente. Isto me faz muito feliz!
               Adoro esconder-me embaixo da cama e sempre dizem que tem “bicho”, que o chão está frio, sujo, mas eu não me importo, se o senhor soubesse como é gostoso observar o pés de vocês aqui debaixo! é outro ângulo do mundo. Nossa, como vocês andam nervosos comigo! só porque outro dia fiquei comendo deliciosamente um Danone e refletindo sobre meu mundinho, deixei derramar apenas um pouquinho no chão, afinal não existe iluminação neste espaço.
              Agora uma das “coisas” que mais adoro é quando o senhor leva-me para dormir, cobre-me cuidadosamente com o meu cobertorzinho branco e começa a contar histórias fantásticas usando e abusando de onomatopeias nunca escutadas em toda minha vida, fico prestando uma atenção até chegar o final da história e quando a mesma termina sempre peço a continuação e o senhor diz: Não, agora vamos dormir meu anjinho que amanhã conto a continuação da história. Poxa, que tristeza ter que dormir e não ouvir a continuação!
              Quando escuto sua voz ao longe já estou quase dormindo, fecho e abro os olhos e viro-me para o lado e lembro-me que temos que rezar, aí rezamos o “Pai Nosso” que o senhor ensinou-me e pedimos ao Papai do Céu que nos abençoe, termino as últimas palavras já sonhando com os anjinhos.
               Mas o que realmente faz-me muito feliz é quando vamos ao Parque de Diversão. O senhor não imagina a minha alegria em poder andar de bicicleta, ir observando árvores, flores, casas e cantando algumas músicas tão estranhas, que é da sua época, mas canto-as, ou tento cantá-las. Sempre levamos brinquedos para brincar na areia e a sua disposição em sentar-se comigo e fazer lindos castelos que às vezes eu os desmancho e o senhor fica um pouquinho zangado, mas não liga não vovô, isto é apenas para o senhor construir outro e podermos ficar um pouquinho mais construindo castelos neste nosso mundinho de sonhos misturados com sua realidade.
             São tantas coisinhas a ser faladas que me faltam palavras, mas o que quero grafar e dizer de coração é que amo o senhor mais que o resto do mundo! Obrigado por existir e fazer-me muito feliz. Um beijinho! Eu te amo! Conta outra “históinha”?

terça-feira, 23 de abril de 2019

AQUELE ABRAÇO


Você combinou com os amigos beber aquele chopinho bem gelado à noite, combinou com a namorada levá-la ao cinema após  o happy-hour, passear no Parque domingo de manhã, pagar suas contas atrasadas, atualizar seus e-mails, terminar de ler aquele livro abandonado na estante faz meses, terminar seu tratamento dentário, passear na praia, ir ao cabeleireiro e no finalzinho da tarde morre.
      Poxa, isto é muito triste! Devemos fazer um protesto e exigirmos que a Morte seja anunciada, seja agendada. Nada de aparecer “de repente” e ir abraçando a gente sem ao menos dar tempo de escolhermos nossas camisas mais bonitas, passar o perfume mais gostoso, dar alguns beijos nas pessoas queridas e deixar o dinheiro para pagar as contas.
      Então aquelas fórmulas matemáticas aprendidas com tanto esforço, noites e noites estudando, provas, simulados, aulas de inglês, concursos, vestibular, faculdade e quando senta-se no banco da praça, lá está uma mulher muito linda, perfumada que começa a conversar com você e repentinamente você sente uma dor muito forte no peito, ela sorri marotamente e diz: Pois é velhinho, chegou sua vez! Prazer, sou Dona morte, vim buscá-lo, faz o favor de acompanhar-me.
     Mas o pior de tudo e não ter tempo de despedir-se de ninguém. Não há “saideira” para a Morte!
     Colocam um terno horrível em você, ajeitam sua face, te enfiam num caixão, ficam falando baixinho e rezando incessantemente. Que nada, gostaria de escolher a roupa que iria, nada falar baixinho, quero muitas piadas e sorrisos estridentes e algumas rezas para não contrariar os mais devotos.
     Bem que poderiam colocar algumas boas músicas de Tom Jobim, Chico Buarque, recitar alguns poemas de Neruda, Cecília Meireles, Jorge Luís Borges, Vinícius de Moraes e tantos outros.
    Não, não pode, ela está sempre apressada, afinal existe um cronograma a seguir e o tempo é precioso. Por isso amigo, viva tudo que há para viver, não se apegue as coisas pequenas e inúteis da vida....Perdoe....Sempre!
    Nunca, jamais adie qualquer sonho e viva o agora porque talvez no próximo segundo você possa pertencer aos vermes que irão rir da sua cara medíocre.


segunda-feira, 22 de abril de 2019

TIO AGOSTINHO



Toda criança gostaria de ter um tio como o tio Agostinho. Desde criança, quando tio Agostinho nos visitava nossa casa transformava-se numa grande festa, tamanho era o carinho que tínhamos por ele.
         Alegre, brincalhão, sempre de bem com a vida, participativo e adorava todas as crianças, nós amávamos tio Agostinho, principalmente quando ele nos protegia das surras de vara de marmelo que mamãe sempre aplicava na gente. Mamãe pedia para ele sair da frente e ele não saia e levava várias varadas de marmelo por nós e ria alto, zombando com tudo e com todos. Que maravilha aquele momento! Nós crianças adorávamos aquele momento que sempre terminava com um comentário de mamãe dizendo: Você acaba “estragando” meu castigo e ele sempre respondia: Ah, Thereza! Deixa pra lá eles ainda são crianças! Quando eu for embora você pode aplicar a surra, agora não. Faz um cafezinho pra gente comemorar a surra frustrada! Mamãe caia na gargalhada e ia preparar o tal do cafezinho.  Nós olhávamos com tanta admiração para tio Agostinho e gostaríamos que ele ficasse morando conosco eternamente, mas tio Agostinho era caminhoneiro e após várias brincadeiras, contar várias piadas e risos ecoados pela casa beijava-nos e dirigia-se a boleia do caminhão para pegar a estrada sem destino, levando apenas a solidão e nossos gritos e risadas na sua mente pela longa estrada.
         Nós fomos crescendo e nossa admiração por tio Agostinho acompanhava nosso crescimento, passamos da fase de criança para adolescente e alguns momentos na minha vida são inesquecíveis e os levarei comigo e contarei a todos onde estiver com um orgulho danado.
         Nunca tinha ido ao cinema e quando completei doze anos tio Agostinho prometeu que iria levar-me ao cinema, fiquei eufórico e lá fomos nós assistir meu primeiro filme chamado “De caniço e Samburá” com Jerry Lewis no cine Júpiter no bairro da Penha, em São Paulo. Saí do cinema encantado, vocês não imaginam quanta alegria invadiu minha alma naquele dia.
          Minha primeira bicicleta foi um presente por ter passado de ano na escola, lembro-me perfeitamente que eu estava jogando bolinha de gude com alguns moleques na rua, no bairro Cidade A.E. Carvalho, em São Paulo e lá aparece tio Agostinho com uma linda bicicleta preta, aro 28. Não me contive de felicidade, joguei todas as bolinhas para o alto, dei um apertado abraço no tio e saí pedalando por baixo do quadro, pois eu não conseguia atravessar as raquíticas pernas por cima do quadro.
        Pedi para fazer uma viagem para qualquer lugar em um imponente caminhão ao qual ele estava dirigindo e saímos de São Paulo à Belo Horizonte, comemos um frango assado por lá, fizemos algumas paradas e nos divertimos muitíssimo, com a paisagem, a estrada e o clima da viagem.
         Foram várias passagens e histórias ao lado do tio Agostinho, pois se fosse contá-las ficaria muitas horas descrevendo tanto carinho e alegria em estar ao seu lado.
        Valeu a pena passar por esta vida, ser criança, adolescente e ter um tio tão maravilhoso como tio Agostinho. Obrigado tio Agostinho. De coração!

PAQUERAS NA PRAÇA DA MATRIZ


 E quando eu cheguei em Jacareí, interior da cidade de São Paulo no início da década de 1970, fiquei encantado em saber que existia uma praça onde os jovens podiam paquerar livremente as lindas garotas existentes naquela época na aconchegante e linda cidade.
         Naquela época eu tinha dezessete anos e algumas meninas que participavam das alegres partidas de ping-pong que aconteciam no quintal da casa da minha tia achavam que eu era “bonito” embora eu tinha lá as minhas dúvidas quando encarava o espelho e via o meu rosto repleto de espinhas durante os demorados banhos dos finais de semana.
         Aos sábados quando eu retornava da “Prainha”, um aprazível local a beira do despoluído rio Paraíba onde eu ia ler os grandes clássicos da literatura Brasileira solicitado pelo mestre de Língua Portuguesa, entrava no meu quarto que dividia com dois primos e dirigia até o nosso guarda-roupa comunitário para escolher as roupas que usaria durante as paqueras no largo da matriz.
         Naquela época era “moda” usarmos calças boca de “sino”, um tipo de calças que cobria totalmente nossos sapatos devido a dimensão exagerada de pano, camisas “gola olímpica”, estilo perfeito para tapar algumas marcas existentes em nossos pescoços após avassaladores namoros e frenéticos beijos nas bocas de lindas meninas, sapatos com enormes saltos que chamávamos carinhosamente de “carrapeta” e cintos com enormes fivelas estampadas algum personagem da época, meias e cuecas eram deixadas em segundo plano, pois as mesmas não seriam vistas pelo público alvo, então não havia a necessidade de tanto esmero com estas peças.
         A escolha das roupas que seriam usadas durante a nossa paquera exigia grande concentração e uma boa dose de vasta imaginação.
         As roupas eram delicadamente retiradas dos cabides e colocadas sobre a cama, um olhar apreensivo, a mão sob o queixo e uma expressão de dúvida franziam nosso olhar.
         Os pensamentos levavam-me ao meio da praça e via-me com uma elegante calças azul-escuro listrada de branco, uma linda camiseta branca “gola olímpica” bordada com o meu nome completo na parte frontal para tornar-se facilmente identificável diante das meninas, sapatos lustrosos e eu diante da linda menina dos olhos azuis e um corpo escultural enaltecendo minhas roupas, meu perfume de terceira categoria a meu rosto espinhento.
         Abandonava as minhas divagações, abria os olhos e pronto,  já estava decidido e escolhida a roupa com a qual eu iria ao encontro da minha princesa da praça. Guardava todas as outras roupas e deixava sobre a cama somente aquela qual seria usada.
         Após longos minutos sonhando acordado, andava vagarosamente até o banheiro cantarolando alegremente uma música de Chico Buarque de Holanda ou do Caetano Veloso, adorava aquela que dizia: “Caminhando contra o vento, sem lenço, sem documento”, para um demorado banho.
         A minha ablução só era interrompida quando minha tia Nina batia na porta do banheiro e dizia sorrindo:
- Oh! Luiz, o banho só lava o corpo e não a alma repleta de felicidade!
Soltava uma enorme gargalhada, fechava a torneira e saia enrolado em uma confortável toalha estampada com a foto do Pateta e entrava sorrateiramente no meu quarto.
         Passados alguns minutos lá estava eu diante do espelho especulando o meu visual e tentando tirar alguma espinha mais atrevida que instalara no meu rosto nos últimos dias e passados alguns minutos eu já estava totalmente preparado e muito feliz com minha aparência.
         Sentava-me na minha cama e ficava folheando uma revista chamada “POP” enquanto aguarda meu primo tomar banho e assim que ele estava arrumado caminhávamos até o portão e enquanto fechávamos o portão eu tecia algum comentário animador:
- Não adianta a gente se arrumar tanto, com nossa melhor roupa, com o nosso “melhor” perfume de terceira categoria se não temos o essencial: Um bom “papo”, diálogo e um poder de persuasão aguçado!
- Pois é Luiz, você está repleto de razão, mas mesmo assim vale a pena a nós tentarmos, quem sabe nós encontramos uma linda Cinderela ignorante, bem mais tolinha que nós, aí sim estamos feitos! Ríamos do diálogo e saíamos apressados com destino a praça.
         Chegávamos na praça e nossos olhares miravam em todas as direções a procura da nossa princesa encantada e quando avistávamos alguma linda garota, lentamente curvávamos diante do monumento, passávamos a língua entre os lábios e reverenciávamos a nobre dama sempre enaltecendo toda a beleza existente naquele corpo.
         Algumas meninas eram simpáticas e educadas e agradeciam nossas pífias cantadas, mas a maioria nem olhavam para nossos rostos e passavam olhando para o outro lado da praça o que nos irritava muito, grandes e sublimes palavrões eram tartamudeados entre uma ou mais mordidas nos lábios.
         As meninas circulavam pela praça no sentido horário e os meninos giravam no sentido anti-horário e assim ficava muito fácil avistarmos tudo e todos durante nossa paquera na praça.
         Alguns alto-falantes eram colocados em alguns pontos estratégicos na praça e os mesmos transmitiam lindas músicas daquela época e só eram interrompidos para anunciar um casamento, algum evento importante e falecimento de pessoas influentes da cidade e seguia tocando a música e nós andando e andando pela praça e nada de achar nossa musa encantada.
         Era muito engraçado quando eu e meu primo ficávamos encantados com alguma pequena, aí fazíamos uma estranha e engraçada aposta para ver quem iria abordar a menina primeiro e quem perdesse era obrigado a “plantar uma bananeira” em plena praça, ou seja, colocar a cabeça no solo e levantar os dois pés para o alto e ficar pelo menos uns três minutos naquela posição.
         Risos nervosos e lá vinha a garota mais linda da cidade e entre um cutucão e outro parávamos na frente da menina e pedíamos carinhosamente se poderia falar um pouquinho conosco e lembro-me que quantas vezes “sacaneava” com o meu primo, pois pedia a palavra e a abordagem da vez e contava todo a nossa aposta para a menina e a mesma aceitava somente para ver o meu primo plantar a tal da bananeira e após colocar os pés no chão e ver que estávamos sorrindo a menina despedia-se e ia embora dizendo que éramos “loucos”.
         O tempo ia passando e às vezes conseguíamos alguma paquera e imediatamente convidávamos a menina para irmos a uma pequena e mal iluminada pastelaria perto da praça para comer alguns pastéis e beber Tubaína.
         Algumas meninas aceitavam nosso humilde e hilário convite, mas a maioria nos abandonavam em plena praça pedindo para convidar nossa querida mãe para tal convite. Ríamos muito alto da situação e continuávamos a procura de outra garota que aceitasse convite tão “pobre”.
         Chegava a hora de retornar para nossa residência, pois, já passava das onze horas da noite e as poucas meninas que ainda insistiam em ficar na praça conseguiam ser mais feias do que nós.
         Recolhíamos nossas emoções e saíamos da praça muito feliz em fazer-se presente e até conseguir abordar algumas meninas porém sem sucesso e assim seguíamos de braços dados com nossa querida e inseparável amiga “Esperança” que jamais nos abandonava em instante algum.
         Deitávamos em nossas camas e ficávamos lembrando dos maravilhosos e divertidos momentos na Praça e entre um sorriso e outro adormecíamos e sonhávamos com aquela linda menina dos olhos azuis que muito tempo mais tarde tornar-se-ia nossa querida namorada.

LIBERDADE

  Há tempos que venho sendo acordado pelo mavioso canto de um pássaro na velha jaqueira existente no quintal da casa onde eu moro. Acordava,...