domingo, 27 de setembro de 2020

CURSO DE ADMISSÃO

 Em mil novecentos e sessenta e seis conclui o curso primário e para entrar no ginásio era necessário fazer uma preparação que se chamava admissão. Eu tinha apenas onze anos e morava em um bairro chamado Ponte Rasa, Zona Leste da cidade de São Paulo.

Eu era um ótimo aluno durante o curso primário, o que levou meu pai a crer que eu poderia ser um excelente aluno durante os anos posteriores. Meu pai decidiu matricular-me em um curso de admissão existente no bairro Ermelino Matarazzo. Eu estudava no período da tarde e no começo do curso assistia as aulas regularmente, mas com o passar dos dias fiz algumas “amizades” na sala de aula com alguns alunos de caráter duvidoso e eles convidaram-me para “cabular” as aulas e irmos nadar em uma grande lagoa chamada cisper.

Inicialmente recusei o convite, pois, sabia que meus pais mais cedo ou mais tarde descobririam, mas com o passar dos dias resolvi experimentar a grande aventura, que mais tarde iria arrepender-me pelo resto da minha existência. Eu e mais alguns alunos que não queriam estudar nos encontrávamos a um quarteirão da escola e íamos alegres para a lagoa. Chegando na lagoa entrávamos na água para tomar nosso banho e refrescar-se das tardes quentes e ficávamos brincando de luta livre. Passados as horas, retornávamos para casa e dizia para nossos pais que a aula tinha sido muito interessante, pois, a professora tinha feito uma palestra sobre plantas e não tinha dado nenhuma matéria.

A ingenuidade da minha mãe naquela época não permitia que ela  observasse que eu tinha “cabulado" a aula. O tempo foi passando e às vezes nós cabulávamos as aulas para refrescar-se na lagoa. Um “colega” até pediu para fazer um carimbo de “presença” para poder carimbar nossa carteirinha escolar nos dias da nossa ausência no curso de admissão.

Lá pelo mês de outubro, meu pai começou a ficar muito desconfiado, pois, eram folhas e mais folhas do caderno em branco e resolveu ir até à escola, saber o que estava acontecendo. Acabou descobrindo que eu não ia à escola já fazia um bom tempo; agradeceu o diretor e pediu para o mesmo desligar-me da escola. Chegou em casa meu pai descreveu minuciosamente para minha mãe todo o ocorrido durante aquele período em que eu estava na escola. Após levar uma surra inesquecível com duas varas de marmelo trançadas, aplicada por minha mãe, resolveram aplicar-me um castigo. Colocaram-me com várias senhoras beatas para eu estudar “o catecismo”. Eu rezava dia e noite sem parar, preparando-me para fazer a primeira comunhão e redimir-me do meu pecado em ter cabulado várias aulas do curso de admissão e gasto o suado dinheiro do meu pai.

Foram semanas de rezas sob a supervisão acirrada de uma freira e tinha dias em que eu chorava baixinho por ter que rezar mais de cem pai-nossos e cem ave-marias. Estava definitivamente arrependido, mas o pior ainda estava por vir e após longas horas de orações meu pai anunciou enfaticamente que jamais durante a sua existência iria pagar escola para mim, se eu quisesse estudar teria que manter meus estudos com o suor do meu rosto e disse rispidamente que eu iria começar na manhã seguinte a trabalhar com ele, numa fábrica de consertos de instrumentos musicais.

No primeiro dia de serviço achei muito divertido, pois, tinha que acordar de madrugada, preparar a marmita e sair apressado para pegar o trem na estação de Ermelino Matarazzo. Como eu era muito pequeno, assim que o trem chegava na estação era muita correria para entrar no vagão e lá estava eu no meio de tantos trabalhadores, transpirando e silenciosos, pensando no que iriam enfrentar naquele dia. Ao meio-dia tínhamos que esquentar nossas marmitas numa “espiriteira”, que era uma lata de sardinha com álcool e comer a marmita sem falar absolutamente nada e voltar para lustrar enormes instrumentos de sopro sob uma espessa camada de fuligem. Uma semana foi suficiente para eu contrair uma diarreia que não esqueço até hoje, tive que ir ao hospital e resolveram suspender o meu castigo.

Com apenas doze anos eu já sentia o peso da responsabilidade em ter que arrumar qualquer serviço para pagar o meu novo curso de admissão. Foi alguns dias procurando um serviço e acabei encontrando em uma fabricazinha de cintos no bairro de Artur Alvim, como ajudante geral, fiquei muito feliz, afinal teria como pagar meu curso de admissão. Quando fui contratado deixei bem claro para o Sr.Francisco, o proprietário da fabricazinha, que eu só poderia trabalhar no período da manhã, pois, a tarde eu necessitava estudar, ele não fez nenhuma objeção, apenas iria pagar a metade do salário. Aceitei o emprego e comecei a trabalhar e foram os seis meses mais sofridos da minha vida, pois, tinha que acordar cedo, ir trabalhar, voltar apressado para casa de bicicleta, almoçar e arrumar-me para ir para o novo curso de admissão.

Terminou o ano do novo curso de admissão e fiz uma prova no Ginásio Álvares de Azevedo, em Itaquera e fui aprovado e comecei a fazer o curso ginasial à noite e trabalhava na fábrica de cintos durante o dia. Senti a responsabilidade, aprendi a dar muito valor no meu serviço e comecei a pensar muito, antes de “cabular” a aula para ir ao cinema com as namoradinhas.

Agradeço muito, do fundo do meu coração aquele castigo que meu pai impôs e até hoje serve-me de lição para eu não enganar mais ninguém e dar muito valor nas ajudas alheias, pago com sofrimento e guardado na minha memória até a hora que Deus chamar-me e solicitar a descrição detalhada do ocorrido. Não haverá sofrimento, apenas algumas lágrimas brotarão dos meus olhos e direi: valeu a Pena! Obrigado meu pai, obrigado minha mãe por tornar-me homem desde a mais tenra idade!

LIBERDADE

  Há tempos que venho sendo acordado pelo mavioso canto de um pássaro na velha jaqueira existente no quintal da casa onde eu moro. Acordava,...