Todas as tardes quando eu chegava do
estafante serviço tinha o hábito de desintoxicar a mente. Após um demorado
banho, vestia um velho calção de banho e ficava várias horas na varanda lendo
um clássico da literatura, bebericando um bom copo vinho gelado e
apreciando a bela paisagem da periferia. Eu morava num sobrado que
ficava na parte mais alta do bairro e da minha varanda tinha uma visão
panorâmica espetacular. O clima era perfeito, uma confortável cadeira de
descanso colocada estrategicamente para observar todos os ângulos e cantos da
bela paisagem de várias casas sem o reboco, pois o bairro ainda estava sendo
formado e também tinha uma visão maravilhosa do Metrô. Uma mesinha de centro,
algumas samambaias penduradas e um canarinho que cantava todo o tempo.
Foi desta maravilhosa varanda que comecei a esboçar minhas primeiras pífias
crônicas. Escrevia as crônicas num caderno e após escritas as mesmas eram
guardas a sete chaves para ninguém lê-las, pois tinha receio que observassem
meus erros de português que naquela época eram muitos.
Nossa vizinha era uma senhora muito pobrezinha e morava numa casa muito pequena
e criava uma criancinha de três anos de idade e do alto da minha varanda
observava todos os movimentos da pequena criança correndo pra cá, correndo pra
lá, sempre sozinha, às vezes parava e começava fazer pequenos buracos no chão
de terra e repentinamente levantava-se e saía correndo atrás de uma galinha e
era muito divertido o diálogo com a galinha que ela carinhosamente chamava de cocó.
Minha vida estava muito tranquila, tinha um bom emprego, uma ótima casa pra
morar, boa comida, uma maravilhosa família e aquela confortável varanda para
todos os meus devaneios mentais vespertinos.
Várias vezes saia da varanda com um peso enorme no coração e ficava imaginando:
Enquanto estamos vivendo maravilhosamente bem existia aquela garotinha que
talvez estivesse passando fome e resolvi falar com minha esposa para pesquisar
como vivia aquela garotinha, quem era e se a mesma estava precisando de alguma
“coisa” e prontifiquei-me a ajudar naquilo que fosse necessário.
No outro dia quando estava na varanda, a porta abriu-se vagarosamente e minha
esposa apareceu segurando a mão da menininha e apresentou-me: Aqui está sua
filha Luiz! Levantei-me um pouco assustado, caminhei vagarosamente até a linda
criança e dei um beijinho na criança e comecei a conversar com a mesma até que
minha esposa disse:
- Esta é a Amanda, o pai está pelo
mundo e a mãe mora muito distante daqui e ela é criada pela avó com todas as
dificuldades de uma pequena renda deixada pelo marido recentemente falecido.
Amanda era linda, franzina, cabelos todo cacheadinho, moreninha e uns olhos
alegres, cheio de esperança que a vida um dia sorriria para ela.
Meus olhos lacrimejaram, corri até o
armário e peguei uma caixa de chocolates e dei a ela que ficou muito feliz. A
partir daquele dia quase todos os dias via Amanda e meu carinho pela aquela
menininha foi crescendo imensamente, pois além de ser muito bonitinha, era
educada e chamava-me carinhosamente de Pai.
Começamos a ajudar Amanda, comprando roupas, enviando cestas básicas para sua
avó, lindas sandálias e passados alguns meses Amanda já fazia parte da nossa
família e ficava várias horas correndo pela sala, cozinha e brincando de videogame
e às vezes colocava a cabecinha na porta da varanda e dizia carinhosamente:
Oooooi Papai! Passava a mão na sua cabeça e ela saia correndo dizendo para
minha esposa que eu queria pegá-la por ter atrapalhado minhas leituras.
Às vezes brincava com ela dizendo se ela não parasse de correr pela casa toda
iria levá-la até o metrô Sé e então rodaria a mesma inúmeras vezes e largaria
ela lá. Ela sorria angelicalmente e dizia: Mas.. papai vamos agora! Vai ser
muito legal a gente brincar de roda-roda no metrô e então ela sorria e saia
correndo novamente pela casa toda e ia contar pra esposa que iríamos brincar de
roda-roda no metrô Sé! Ríamos muito daquele momento.
Após um farto jantar perguntei a minha patroa se não seria possível adotar
aquela menininha e ela vir morar conosco e ela ficou de pensar e falar com a
avó para ver se era possível.
O mês de dezembro começara e a lista de presentes natalinos já estava sendo
montada e nunca nos esquecíamos da querida Amanda. Após um maravilhoso natal
repleto de presentes e uma mesa divina com comidas de todas as espécies
aproximava-se meu aniversário que era dia 27 de dezembro e todos estavam
programando dar me um maravilho presente e então a ansiedade fazia-se presente
constantemente.
No dia do meu aniversário minha esposa ligou-me e pediu para eu ir direto pra
casa, pois iríamos sair para comemorar meu aniversário e assim foi feito.
Cheguei em casa e fiquei um pouco assustado, pois todas as luzes estavam
apagadas e quando abri a porta da sala, acendeu-se a luz e quase todos os meus
amigos começaram a cantar Parabéns para mim. Um lindo bolo disposto numa
elegante mesa da sala, várias taças de cristal dispostas sobre a mesa e um
vinho importado completava o maravilhoso cenário. Foi quando minha esposa pediu
para vendar meus olhos que ela ia trazer meu presente e vendou meus olhos e
logo em seguida ela pediu para eu abrir e ver o lindo presente que eu tinha
ganhado: Abri os olhos e não vi absolutamente nada e a esposa falou para mim,
olha pra baixo e veja seu lindo presente! Quando avistei Amanda com os
bracinhos esticados querendo um abraço e dizendo: Sou eu seu presente Papai!
Feliz Aniversário! Quase tive um enfarto de tanta emoção, abracei Amanda e dei
um carinhoso beijo no seu rostinho. Tínhamos conseguido que Amanda viesse morar
conosco, aquele era meu presente: Uma filha! Foi criada com muito carinho
enquanto esteve conosco e passados algum tempo voltou para casa da avó.
Presente maravilhoso, devidamente guardado a sete chaves na minha memória e
agora todos sabemos.