Em 1970, éramos adolescentes e
morávamos no bairro da Cidade A. E. Carvalho e o nosso passatempo favorito era
confeccionar e empinar pipas nas manhãs de sábados.
Nosso encontro acontecia nas manhãs
de sábados na área de entrada da casa do meu amigo Israel.
O ritual alegre era acompanhado pela
garotada da periferia que tentava descobrir como fazer belas e multicoloridas
pipas.
Tudo era feito com muita descontração
e alegria, desde o preparo da cola feita com farinha de trigo que eu levava de
casa e que exigia muito esmero para não sujar o belíssimo fogão da dona Ondina,
mãe do meu colega Israel.
As folhas de papel de seda eram adquiridas
na lojinha da dona Matilde, escolhidas cuidadosamente entre as diversas cores
dispostas na prateleira.
Existia um momento que exigia grande
concentração, era quando começávamos a “afinar” as varetas que eram retiradas
do bambu do varal de roupas da dona Ondina. Nesse momento, até que adquirisse
destreza com a afiadíssima faca dialogávamos sobre as novas namoradinhas, os
estudos no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, que se localizava em Itaquera
e sobre o serviço como Office-boy numa Cia. de Seguros no centro de São Paulo.
O grande prazer completava-se por
estar ao lado do amigo que não via há uma semana e poder detalhar o perfil da
nova namorada que trocávamos assim como éramos trocados frequentemente.
Às vezes éramos obrigados a abandonar
nossa área de lazer momentaneamente, pois dona Ondina queria varrer a mesma, o
que ocasionava um tempo de espera encostados no velho carro Ford semidesmontado
pelo Sr. Luís, pai do meu amigo, que era mecânico. Nesse momento passava o Zé
Roque, irmão do meu amigo e parava na nossa frente com algumas peças de
televisão na mão, pois o mesmo tinha uma oficina de conserto no quintal, e
ficava zombando da nossa capacidade de confeccionar pipas. Gargalhadas
espalhadas pelo ar entrecortadas pelos raios de Sol da bela manhã de sábado
completava a nossa felicidade com a chegada do Lalá com seu tradicional assobio chamando sua namorada
que era a irmã do Israel. Saia toda perfumada, sorrindo e pisando
cuidadosamente sobre as pipas para não amassá-las. Abraçavam-se carinhosamente
e nós abaixávamos a cabeça concentrados na confecção da nossa namorada, que era
a pipa.
Constantemente olhávamos o céu azul e
a nossa maior preocupação era com o vento e entre a confecção das pipas e a
eterna paciência em fazer aquelas “rabiolas” quilométricas, molhávamos o dedo
com saliva e expunha-o ao vento para saber qual a direção que o mesmo soprava e
qual era a sua intensidade. Dessa maneira tínhamos uma vaga noção por onde
nossas pipas e nossos pensamentos voariam.
O vento da periferia sempre era
bondoso conosco e jamais deixava de soprar aos sábados de manhã e às vezes
trazia o aroma agradabilíssimo do café coado pela dona Ondina que era servido
em xícaras de porcelana pelo Lalá e sua linda namorada. Sempre sorrindo e
desejando-nos bons ventos.
Talvez por não existirem prédios, o
vento soprava uma agradável brisa, na quantidade exata às nossas expectativas e
aos nossos sonhos de adolescente, e soprava em quase todas as direções.
Fazíamos as pipas com perfeição e
elas raramente deixavam de voar.
Tínhamos uma brincadeira maravilhosa
que consistia em dar nomes às nossas pipas e geralmente ganhavam nomes da
última namorada e assim que o mesmo ganhava o céu ficávamos imaginando subir
junto com eles e ficarmos olhando lá de cima tudo o que tinha acontecido,
acontecia ou iria acontecer no nosso querido bairro Cidade A. E. Carvalho.
Havia sábados em que o vento soprava
em direção ao bairro de Itaquera e nesses sábados nossos pensamentos avistavam
cenas e situações indescritíveis. Lá de cima podíamos avistar a padaria com sua
enorme máquina de assar frangos, pessoas saindo com saquinhos de pães, carros
com o volume do rádio um pouco acima do normal tocando músicas de Roberto
Carlos, Caetano Veloso, Os Beatles e Morris Albert cantando “Feelings”. Olhando
atentamente poderia observar minha caixa de engraxar sapatos que outrora
colocava em frente à padaria e ficava aguardando pacientemente os fregueses.
O ponto de ônibus em frente à
padaria, e motoristas e cobradores sorrindo entre um gole de café, uma coxinha
comida e um cigarro aceso. Pessoas entrando pela porta traseira e o ônibus
saindo vagarosamente com motoristas com óculos escuros acenando aos
companheiros com destino à Praça Clovis Bevilaqua. Viagem longa que nossas
pipas não conseguiam acompanhar.
Observava crianças correndo
alegremente, pelo pátio da escola Milton Cruzeiro durante o recreio e o ônibus
Mogi-Parque D.Pedro II que passava em alta velocidade deixando-nos atônitos.
O vento mudava um pouco a direção e
de lá de cima enxergava minha mãe e outras mães do bairro lavando roupas na
mina e conversando sobre o sofrido cotidiano. Enquanto as roupas eram “quaradas”
pelo tempo de trocar uma receita de bolo ou reclamar do custo de vida que já
naquela época fazia-se presente.
Eis que a pipa e os nossos
pensamentos pairavam sobre a igreja do bairro e podíamos deliciar-nos com a
tradicional quermesse onde recebia as meninas com seus cabelos cortados “à Chanel”,
devidamente arrumados com “laquê” e trajando lindos vestidos rodados coloridos
e os meninos trajando calças “boca de sino” com cintura alta, parecendo um
toureiro da periferia, e suas inconfundíveis camisetas “volta ao mundo” ou
“gola olímpica”.
Sentia o aroma dos bolinhos caipiras
preparados pelas mães do bairro e avistava barracas coloridas, que ajudávamos a
montar, que abrigavam diversos jogos e vendas de guloseimas. As meninas eram
vigiadas constantemente pelas mães ou irmãos que não permitiam beijos ou
abraços, o máximo era uma piscada bem longe dos olhos severos dos pais de
antigamente.
O alto-falante sussurrando uma
inaudível música de Nelson Ned entrecortada pela voz rouca do amigo Israel que
era o locutor oficial da quermesse, anunciando o início do jogo de bingo que
jamais conseguira ganhar, completava a paisagem.
O barulho estridente do trem que
fazia o trajeto Brás-Mogi das Cruzes afastava os namorados que trocavam
presentes na véspera do Natal.
O vento começava a parar de soprar e
era hora de recolher as pipas, nossas imaginações e nossos sonhos e retornar às
nossas casas, depois de um abraço e um aperto de mão. Estávamos novamente na
terra e ficávamos torcendo para que a semana passasse rápida e o vento mudasse
de direção para que pudéssemos nos encontrar e avistar novos lugares e
acontecimentos do pacato bairro da Cidade A. E. Carvalho.
Um passado não muito distante que
ganhara as alturas através da nossa criatividade e amizade sincera e que deixou
muitas saudades de um tempo em que dávamos vazão a nossa imaginação de
adolescente, através de uma pipa, uma pipa nas manhãs de sábados.
Esta é uma pequena homenagem ao meu
amigo Israel Brienzo que faz exatamente uns trinta anos que não vejo. Soube que
anda morando lá pelas “bandas” do Norte do Paraná. Abraços, amigo, e saiba que
até hoje me lembro das lindas namoradas e pipas que tanto empinamos juntos.