sexta-feira, 25 de setembro de 2020

0 RELÓGIO CUCO


 Existem alguns objetos da nossa casa que marcam profundamente nossa vida. O objeto que marcou minha vida foi um relógio cuco que meu pai ganhou de um velho amigo chamado Sr.Heitor. Lembro-me perfeitamente quando meu pai ganhou o relógio cuco. Todos finais de semana meu pai e o Sr.Heitor jogavam baralho, um jogo chamado Presidente. O jogo era silencioso e para quebrar a monotonia do silêncio começaram uma acirrada discussão sobre política e eram constantes as divergências de opiniões. Após o término de uma partida de baralho o Sr.Heitor levantou-se da poltrona, irritado, pois, tinha perdido a mesma e caminhou nervosamente até a cozinha e trouxe uma caixa de papelão e entregou para meu pai. A caixa foi colocada sobre a mesa, sob nossos olhares perscrutadores de crianças e meu pai  começou a abri-la cuidadosamente, pois, pensava tratar-se de mais uma brincadeira do Sr.Heitor e quando viu que era um relógio cuco, seus olhos marejaram e ele não se conteve de felicidade e deu um forte abraço demorado no Sr.Heitor. Todas as peças do relógio foram retiradas cuidadosamente da caixa de papelão e colocadas sobre a mesa.

O relógio era construído com madeira maciça e tinha vários entalhes artísticos e era envernizado, o pêndulo, a corrente e o peso eram cromados, os números eram em algarismo romano com um pequeno cristal colocado sobre os algarismos, os ponteiros que marcavam as horas e os minutos eram dourados e brilhantes.

O relógio que meu pai ganhou era muito bonito e tinha sido fabricado na Inglaterra, um selo de garantia colocado na parte de trás denunciava sua origem. Meu pai e Sr.Heitor começaram a montar o relógio e transcorridos alguns minutos o mesmo já estava totalmente montado.

Um enorme prego foi fixado na parede da sala e cuidadosamente nivelaram o relógio, acertaram os ponteiros com o horário vigente e meu pai puxou vagarosamente a corrente para baixo para dar corda e após alguns segundos começamos a ouvir os primeiros tic-tacs. Fomos advertidos por meu pai que jamais deveríamos dar corda no relógio, pois, ele ficaria encarregado desta delicada tarefa, ele estava precavendo-se das nossas mãozinhas destruidoras.

Após ouvir atentamente as orientações do meu pai, sentamos no chão, embaixo do relógio e ficamos aguardando pacientemente o passarinho aparecer. O tic-tac constante enchia toda a sala e a nossa ansiedade aumentava a cada movimento do ponteiro de minutos, o silêncio era total até o instante em que se abriu uma portinha e saiu um lindo passarinho de madeira com peninhas multicoloridas cobrindo o corpo e pôs-se a cantar vários "cucos".

Após o maravilhoso canto o passarinho recolheu-se, a portinha fechou-se e saudamos o mais novo amiguinho do nosso lar com palmas e alguns gritinhos estridentes das minhas irmãzinhas.

Os segundos, os minutos, as horas e os dias foram passando, passando e o relógio cuco já fazia parte da família, da nossa vida.

Semestralmente o relógio cuco era retirado da parede e colocado sobre a mesa e meu pai desmontava-o para executar uma limpeza e lubrificação do mesmo. Neste dia fazíamos uma verdadeira festa, ficávamos em volta da mesa admirando as mãos hábeis do meu pai manuseando minúsculas peças, jogando um pouco de óleo numa determinada peça, assoprando outra peça, mas sempre de olho na gente, pois, nossa paixão pelo passarinho era muito grande e sempre queríamos tocá-lo e admirar o mesmo, saber como poderia cantar alegremente de hora em hora, sendo de madeira. Para saciar nossa curiosidade pueril, meu pai deixava nós segurarmos o passarinho por alguns segundos. Após delicada limpeza e lubrificação, o relógio era recolocado na parede e após dar corda o tic-tac era audível.

Era o relógio cuco que avisava minha mãe quando ela tinha que dar algumas colheradas de um fortificante chamado “Emulsão Scoth”, tal fortificante tinha um sabor horrível e várias vezes torcia para o relógio cuco parar, para evitar tal sofrimento, mas sabia que era quase que impossível, devido a meticulosa limpeza e lubrificação do mesmo. Nessa hora eu odiava o relógio cuco e cheguei mesmo a praguejar o inocente passarinho.

O agradável aroma de café sendo coado, esparramava um delicioso odor pela casa e coincidia com o ponteiro menor no algarismo seis e o ponteiro maior no algarismo doze. Eram seis horas da manhã e o passarinho cantava seis cucos e meu pai levantava-se para ir ao trabalho. Foi assim que comecei a aprender as horas, pelas constantes coincidências dos fatos do cotidiano e a quantidade de cucos ouvidos.

Nos dias chuvosos em que mamãe proibia-nos de sair de casa, após brincar com todos os brinquedos de casa, eu improvisava uma balança com o relógio cuco. Atravessava minhas raquíticas pernas sobre o pêndulo que ficava na extremidade da corrente e balançava alegremente, sempre de olho em todas as direções para não ser surpreendido por minha mãe e evitar uma surra de vara de marmelo. Foram várias balançadas e nunca fui surpreendido até o dia que relógio cuco desabou sobre minha cabeça e fui parar no hospital e quando souberam que tinha sido o relógio cuco o agressor da minha mente, as enfermeiras e o médico desabaram em risos enquanto davam alguns pontos na minha cabeça.

Os cucos acompanharam-me desde as primeiras letras aprendidas na cartilha Caminho Suave, curso de Admissão, ginásio e uma parte do primeiro ano do colegial. Era o relógio que controlava meu tempo de estudos e durante as minhas hesitações, dúvidas, das primeiras palavras aos problemas de Física, Matemática, Química e outras disciplinas era para o relógio cuco que eu dirigia meu olhar como que suplicando alguma ajuda até que repentinamente as respostas surgiam na minha mente como por encanto.

Foi o relógio cuco que me acordou no primeiro dia de trabalho como office-boy numa Cia.de Seguros, assinalou o horário que devia encontrar com a minha primeira namorada e denunciava-me quando chegava atrasado em casa.

Saí de casa aos dezessete anos para ir estudar no interior de São Paulo, despedi-me de todos e assoprei um carinhoso beijo para o relógio cuco e fiquei pensando que ele nunca mais iria controlar a minha vida.

Quando regressei para casa após alguns meses, não encontrei mais o relógio cuco na parede da sala, perguntei a todos sobre o seu paradeiro e disseram que o relógio tinha quebrado e tinham doado o mesmo para um carroceiro que passava constantemente na rua onde morávamos.

Olhei para a parede onde o mesmo ficava e restava apenas a marca com seu formato, abaixei a cabeça tristemente e ouvi alguns tic-tacs produzidos pela minha imaginação e a partir daquele momento passei a sentir uma saudade imensa daquele querido amigo que me acompanhou da infância até a juventude com seu constante tic-tac sem parar.

Controlou meus risos, minhas lágrimas, minhas alegrias e minhas tristezas, foi amigo e em alguns momentos foi meu algoz, mas estava sempre dentro do meu coração, até hoje. Talvez ainda eu o encontre num ferro-velho da periferia da cidade de São Paulo! Seria muita Felicidade. Deixa para lá, continuamos com os tic-tacs da nossa vida.


LIBERDADE

  Há tempos que venho sendo acordado pelo mavioso canto de um pássaro na velha jaqueira existente no quintal da casa onde eu moro. Acordava,...