sexta-feira, 18 de setembro de 2020

O TROPEIRO

 


Das poucas lembranças que ainda guardo do meu querido avô paterno José Raimundo da Silva era quando estávamos sentados ao redor de um fogão à lenha numa casinha feita de barro na cidade de Salesópolis, interior da cidade de São Paulo.

Durante as minhas férias minha mãe e meu pai permitiam que eu ficasse alguns dias naquele paraíso. Eu era garoto de dez anos e adorava quando eu pedia para meu avô contar histórias do passado e ele a princípio não gostava muito, pois, meu avô era de pouca prosa, mas de tanto eu insistir ele arriscava algumas poucas palavras.

Eu era muito curioso e as perguntas eram constantes e às vezes sentia que meu avô ficava um pouco zangado durante a enxurrada de perguntas e quem vinha ao socorro era minha avó Maria, esposa do avô Raimundo interferia na conversa e dava a versão dela a pergunta feita. O que eu gostava mesmo de perguntar era a origem, como moravam, onde trabalhavam e sentia que meu avô sentia-se um pouco envergonhado de falar da onde ele veio.

De tanta insistência acabei descobrindo que meu avô tinha sido tropeiro e eu na época nem sabia o que era tropeiro e foi então que olhos do meu avô brilhavam e ele começava a relatar em poucas palavras como era a vida de tropeiro quando ele era jovem.

O grande comércio de muares era realizado na cidade de Sorocaba, interior da cidade de São Paulo e meu bisavô e a peãozada saiam de Mogi das Cruzes e iam tocando os bois, cavalos e mulas com destino a Sorocaba para vender os bois, as mulas e fazer algumas trocas. As mercadorias, a tropa pertencia a um rico fazendeiro que enviava um homem com a peãozada para negociar em Sorocaba.

Demorava uma semana para atravessar as 47 léguas, aproximadamente 200 quilômetros que separavam as duas cidades e o caminho era de grande dificuldade, pois, tinham que atravessar rios e encarar o difícil caminho. Andavam durante o dia e a noite montavam os ranchos que era uma enorme lona onde a peãozada fazia as comidas que levavam: carne seca, farinha, toucinho, café, açúcar, fubá e pimenta-do-reino. O fogão onde eles preparavam as comidas era improvisado e quando chegavam o peão que era encarregado de cozinhar já construía o fogão em três pedras grandes em formato de um triângulo ou colocavam três varas em pé e acendia o fogo com lenha obtida no meio do mato.

Após relatar a ida de Mogi das Cruzes até Sorocaba meu avô falava que ele não chegou a fazer este trajeto e sim o pai dele que fazia.  Meu avô tinha sido tropeiro, mas apenas conduzia os animais de uma fazenda até outra fazenda.

Assim que meu avô disse que ele não tinha feito o caminho de Mogi das cruzes até Sorocaba fiquei um pouco triste, mas optei em não interferir para não quebrar o encanto da narrativa e tentar arrancar mais algumas palavras do meu avô.

Como eu sempre gostei de mato, de roça ficava imaginando o tanto quanto seria legal estar com eles nesta maravilhosa e sofrida viagem, colocava as mãos no queixo e ficava atento ao resto da narrativa.

Desarreavam os cavalos e deixava eles pastando enquanto alguns armavam suas redes, outros dormiam em esteiras ao redor da grande fogueira que faziam para espantar os animais que porventura se aproximassem.

De vez em quando meu avô parava de falar e ficava pensativo mexendo no tição do fogão à lenha e o silêncio me incomodava e eu fazia outra pergunta:

— Vô, vocês levavam suas mulheres e filhos para viajar com vocês?

Meu avô sorria e balançava a cabeça negativamente, economizando palavras e eu aceitava aquela vazia resposta e pedia ajuda para minha avó tentar fazer ele contar mais um pouco da história.

Após alguns minutos meu avô nos abandonava e saía um pouco para o grande quintal para dar milho para as galinhas e eu ficava imaginando o quão sofrido devia ser aquela longa viagem.

Depois de muito tempo conversando com meu pai José da Silva soube que meu avô morou muito tempo no bairro da terceira em Biritiba Mirim e em outra época morava perto do rio itapanhaú onde plantavam bananas e meu avô ia comercializar em Bertioga. Ia a pé com vários cachos de bananas e ainda levava meu pai em cima dos cachos de bananas, realmente ele era muito forte, falava meu pai.

Era hora de voltar para minha casa, pois, minha mãe tinha ido me buscar e durante a longa viagem de Salesópolis até São Paulo quando estávamos no trem ficava olhando as matas, as árvores e ficava imaginando que meu avô deveria ter passado por aqueles lugares.

Chegava em casa e ficava torcendo para que as próximas férias viessem logo para eu poder ouvir as maravilhosas histórias do meu querido avô tropeiro Raimundo José da Silva.

ANA SEXTA FEIRA


Depois de um longo período de árduos estudos consegui ser aprovado em um Concurso Público para trabalhar na Faculdade de Odontologia de São José dos Campos, interior da cidade de São Paulo como Auxiliar Administrativo.

Após a vasta documentação ser entregue no Recursos Humanos, fazer exame médico, fiquei aguardando a publicação no Diário Oficial do Estado de São Paulo. Demorou apenas quinze dias e fui convocado para iniciar minhas atividades na Faculdade.

No primeiro dia de serviço em qualquer lugar do mundo, ficamos muito apreensivos, ansiosos e sedentos para saber aonde iremos trabalhar, quais pessoas conheceremos, como será o ambiente de trabalho.

Apresentei me no RH no dia especificado e lá estava o Luizão, chefe do RH que se apresentou e levou eu até uma minúscula salinha e apresentou-me para o Carlos chefe da seção onde eu iria trabalhar. Naquele exato momento quase chorei de raiva e pensava: caramba! Estudei tanto, dei o melhor nos estudos, passei noites em claro debruçado em cima de apostilas, resolvendo vários exercícios de matemática e Língua Portuguesa e acabo caindo neste lixo. Respirei fundo, enxuguei um pouco do suor, esbocei um sorriso no canto da boca e assim fui abandonado naquela minúscula salinha. O Carlos apontou uma mesinha toda velha onde eu iria ficar e começou a explicar o que eu iria fazer, fiquei atento e após todo o dia explicando e apresentando todos os departamentos da Faculdade estava decidido a continuar, pelo menos por alguns dias ou meses para ver o que acontecia.

O Carlos era uma pessoa de muito alto astral, de bem com a vida, sorridente e de pouca idade assim como eu que tinha apenas vinte e um anos.

A Faculdade de Odontologia naquela época, 1978, parecia uma pequena cidade onde todos se conheciam e era muito movimentada, pois, oferecia tratamento dentário gratuito para as pessoas que necessitavam. Com o passar do tempo já me sentia em casa e aprendi todo o serviço que consistia em cadastrar todos os bens móveis da Faculdade e identificar e apresentar um relatório mensal atualizado, era a seção de Patrimônio.

Eu, naquela época fazia um curso Técnico em uma escola Técnica Federal em São José dos Campos, era casado recente e todos os dias eu ia a pé até a Faculdade.

O Carlos, muito brincalhão e sorridente começou a colocar apelido em todas as pessoas que trabalhavam na Faculdade e ainda me envolvia nas suas brincadeiras, no início ficava um pouco temeroso, mas com o passar do tempo até sugeria alguns apelidos, foi o que aconteceu com uma colega que trabalhava no Departamento de Dentística e fui logo sugerindo durante um bate-papo na hora do almoço:

— Carlão, o que você acha da Ana? Após alguns segundo pensando o Carlão respondeu:

— Ah! Acho ela uma pessoa muito brincalhona, feliz com a vida, muito sorridente, por quê?

- Você não pensa que a Ana tem a cara da sexta-feira?

Após uma sonora gargalhada o Carlão disse:

— Está aí, a partir deste momento está decretado que nossa querida Ana passará a chamar-se Ana Sexta Feira, e não falamos mais nisso e que ela demore a descobrir o que se enconde atrás dos nossos sorrisos quando ela aparecer na nossa frente.

O tempo foi passando e a relação de pessoas que iam ganhando apelidos era enorme e sempre que a Ana ia tirar xerox passava na nossa minúscula salinha para dar um alô e jogar meia dúzia de palavras fora e era quando começávamos a sorrir.

Inicialmente a querida colega Ana não entendia nada o que estava acontecendo e a conversa continuava normalmente até que em um dia no Diretório Acadêmico da Faculdade, exatamente em uma sexta-feira estávamos bebendo algumas cervejas para oxigenar a mente e após alguns copos de cervejas a Ana fez a seguinte pergunta:

- Sabe pessoal, tenho notado que quando apareço na seção na qual vocês trabalham vocês ficam com sorrisinhos entre uma conversa e outra, o porquê destes sorrisos?

O Carlão olhou pra mim e resolvemos contar para a Ana o porquê dos nossos sorrisos: e o Carlão falou:

- Sabe Ana, eu e meu amigo Luiz começamos a apelidar todos os funcionários da Faculdade e você também ganhou um apelido, sabia? A Ana muito curiosa quis saber qual era o apelido e foi logo perguntando:

— Qual apelido vocês deram para mim e o por quê?

O Carlão sorrindo disse: seu apelido é Ana Sexta Feira e já foi logo explicando: porque você tem a cara da alegria, a cara da felicidade, é uma pessoa muito bonita e gostamos muito de você.

Sentimos algumas lágrimas rolarem no rosto da Ana e ela levantou e deu um forte abraço na gente e agradeceu muito pelo apelido e nós ficamos aliviados em acertar o apelido para nossa amiga.

A partir daquele dia a Ana que já era uma pessoa muita alegre, extrovertida sempre que nós nos encontrávamos ela sorria com aqueles lindos dentes branquinhos e dizia:

- Já sei que meu apelido é Ana Sexta Feira e tenham um bom dia! e saía apressada sempre sorrindo para levar um documento em algum departamento.

Quando chegou final do mês de janeiro de 1981 minha esposa Ivete ía ganhar o primeiro filho, o Márcio e eu estava muito feliz e disse para Ana se ela poderia levar minha esposa de São José dos Campos até Jacareí quando o garoto nascesse e ela prontamente disse que sim. Naquele dia foi muito engraçado, pois, fomos até o hospital no lindo fuscão vermelho que a Ana tinha e ela falava: Segura que aqui é volante! e sentava o pé no acelerador. Chegando em casa ela se prontificou a furar o bico da mamadeira para dar a um chazinho para o Márcio e quase matamos o garoto, pois, a Ana fez um buraco muito grande na pequena mamadeira e ele se engasgou. Após o susto passar, entre um sorriso e outro a Ana se despediu desejando Felicidades para todos nós.


Todas as sextas-feiras participávamos de um jogo de futebol na quadra devidamente uniformizados e já tínhamos até torcida organizada e sempre nossa querida Ana Sexta Feira fazia se presente.E quando para nossa surpresa a Ana falou que iria se casar que gostaria muitíssimo que fossemos e foi um casamento muito diferente, pois, não sabíamos que o namorado da Ana era um soldado do Corpo de Bombeiros e quando todos estávamos dentro da igreja escutamos várias sirenes ao redor da igreja e saímos para ver o que estava acontecendo e eis que parou um carro da corporação do corpo de bombeiros e a Ana saiu do carro toda sorridente e entrou na igreja com aquele sorriso maravilhoso.


O tempo foi passando, passando e em um determinado dia após eu me formar em Eletrônica fui trabalhar em uma fábrica de equipamentos para Aeroportos. Despedi-me de todos, dei um forte abraço na querida Ana Sexta Feira e saí com aquele sorriso lindo na minha mente da querida Ana, Ana Sexta Feira.

LIBERDADE

  Há tempos que venho sendo acordado pelo mavioso canto de um pássaro na velha jaqueira existente no quintal da casa onde eu moro. Acordava,...