quinta-feira, 24 de setembro de 2020

LÁPIS DE COR

 

      Naquela manhã do rigoroso inverno de 1962 parecia que o mundo ia acabar, o céu estava muito escuro, prenunciando um enorme temporal. A luz da cozinha foi acesa, ouvi  barulho de água da torneira enchendo uma chaleira e o barulho de alguns fósforos sendo acesos, era mamãe que sempre levantava bem mais cedo do que todos nós para fazer os preparativos para o café matinal.

     O barulho incessante do vento assoprando ruidosamente lá fora, fazia-me encolher na cama e sentir um pouco de medo do fim do mundo, que naquela época já existia alguns profetas anunciando que iria chegar. Pensava que aquele dia seria realmente o final e tudo estaria acabado. Nunca mais poderia jogar a minha querida bola de capotão com papai que ganhara no Natal, não poderia mais brincar com meus coleguinhas de “mão na mula”, bolinha de gude, rodar pião, pega-pega e outras brincadeiras da época, sentia-me muito triste em ter que partir não sabendo pra onde, realmente não estava preparado para o fim do mundo.  O passarinho do relógio cuco anunciou seis cantos, eram seis horas. Papai levantou e dirigiu-se ao banheiro para sua ablução matinal, eu encolhi-me na cama um pouco mais e fiquei esperando ser chamado por mamãe para ir à escola.

      O cheiro agradabilíssimo de café coado por mamãe invadia todos os cômodos da casa e coloquei-me de pé rapidamente. Assim que papai saiu do banheiro eu entrei para tomar banho e fiquei imaginando irmos para escola sob aquele temporal que não demoraria muito a desabar. Mamãe apressou-me com alguns toques na porta, saí e sentei-me preocupadíssimo a mesa para tomar café com rabanadas que papai tanto apreciava. Naquele dia eu estava muito introspectivo, calado, sério e todos notaram, mas continuaram a falar do cotidiano sem fazer comentários a meu respeito.

          Papai deu um beijo na mamãe, um beijo na minha testa e saiu apressado para o trabalho debaixo de alguns pingos que começara a cair. Logo em seguida eu e mamãe saímos para a escola. Iria ter aula de desenho e a professora Judite deixou bem claro que quem não trouxesse lápis de cor não entraria na sala.

      Chegamos na escola sob um forte temporal que começara a cair e mamãe abriu minha mochila para ver se tudo estava certo, se não faltava nenhum material escolar e repentinamente franziu a testa e fez uma cara de espanto e disse que eu tinha esquecido a caixa de lápis de cor. Minha reação também foi de espanto, pois tinha colocado os lápis na minha mochila e não sabia quem tinha tirado de lá. Comecei a chorar baixinho e mamãe acalmou-me passando a mão no meu rosto e dizendo que iria pegar os lápis em casa e voltaria rapidamente.

         Entrei no pátio da escola, procurei os alunos da minha classe, entrei na fila, cantamos o Hino Nacional e dirigimo-nos a sala de aula sob a supervisão da professora. Sentamos todos educadamente, a professora fez a chamada e logo em seguida distribuiu os desenhos que seriam pintados naquela aula. Quando ela percebeu que eu não tinha lápis de cor, pediu gentilmente que eu aguardasse mamãe do lado de fora da sala de aula.

       Saí morrendo de vergonha e fiquei perto da porta aguardando eternos minutos o retorno de mamãe. Foram momentos de angustia, perplexidade e medo. Às vezes colocava o rosto numa pequena janelinha da porta e via todos os alunos pintando alegremente e eu ali do lado de fora aguardando o lápis de cor. O vento gélido no corredor, o barulho do trovão e os raios apavoravam-me e eu comecei a rezar baixinho para que aquele momento cessasse o mais breve possível.

            Avistei mamãe no final do corredor e corri até ela com os olhos marejados, mamãe entregou-me a caixa de lápis de cor, beijou meu rosto e pediu carinhosamente que eu entrasse na sala de aula rapidamente.

       Pedi licença para professora para entrar na sala e amaldiçoei-a mentalmente até chegar na “carteira escolar”. Sentia-me culpado por ter feito mamãe ficar toda molhada e eu comecei a pintar o desenho que acabou todo borrado por alguns pingos de lágrimas de arrependimento e só então descobri o verdadeiro amor que uma mãe nutre por um filho em todas as fases da vida.

            Naquele dia chegando em casa dei um apertadíssimo abraço em mamãe e pedi a ela “mil desculpas” e vários perdões. Ela sorriu angelicalmente e disse que não fizera mais que uma obrigação de mãe. Não me contive novamente e deixei rolar algumas lágrimas pela face. Deixei a mochila no sofá e fui almoçar, refletindo muito sobre o ocorrido e prometendo que quando soubesse escrever contaria esta “História”. Passaram-se somente cinquenta e oito anos e o sonho acaba de concretizar-se, consegui escrever. Tá escrito. Lápis de Cor.

 

O CIRCO DA PERIFERIA

 

       

O que poderia existir de mais belo que a chegada de um circo na periferia da cidade de São Paulo na década de 70? Absolutamente nada era mais belo e emocionante para nós adolescentes moradores no querido bairro Cidade A.E.Carvalho, zona leste da cidade de São Paulo.

     Quando aquelas carretas enormes e multicoloridas passavam na Avenida Campanelas e estacionavam em frente à Praça Ana das Dores, "a pracinha", nossos corações disparavam de alegria e os corações de nossas mães disparavam de aflição, pois, sabiam que seria quase que impossível segurar seus filhos em casa.

     A molecada chegava sorrateiramente, perscrutando o local e os trabalhadores braçais com perguntas tolas, tais como: como é o nome do circo? Quando irá estrear? Tem bichos? Qual é o nome do palhaço?

     Os trabalhadores bem mal-humorados e suando muito se restringiam a dar respostas curtas, sempre tirando enormes tábuas dos caminhões, empurrando ferros, esticando lonas, sem parar e sem olhar para cara de ninguém. Nós “xeretando” aqui e ali e lá estavam os artistas dentro de um enorme “trailer” lanchando tranquilamente e rindo alto, denunciando que estavam muito felizes. Os dias iam passando e o circo ia sendo montado, dia e noite de trabalho e após dois ou três dias o mesmo já estava montado. Lindo, majestoso, imponente! Mudando toda a paisagem da pracinha.

     Eis que chega o grande dia da estreia e nota-se uma enorme placa com os dizeres: Grande Estreia! domingo às 15 h o circo Cigano convida você e sua família para assistir o maior espetáculo da Terra! Acontecia duas sessões, às 15 h e às 20 h e sempre íamos nas duas sessões, sendo que na segunda sempre levávamos nossas namoradinhas.

     Alguns alto-falantes eram esparramados pelo lado externo do circo e tocavam várias músicas orquestradas, Carlos Gonzaga com uma música chamada Diana e várias músicas de Roberto Carlos.                       Entre pipoqueiros, vendedores de algodão-doce esparramava-se nossa Felicidade.

     Segurando a mão da minha namoradinha comprava os ingressos e um enorme saco de pipocas e entrávamos vagarosamente, prestando atenção em tudo e em todos. Sentávamos na arquibancada feita de madeiras, bem lá no alto e ficávamos aguardando ansiosamente o início do espetáculo.

     Várias crianças corriam para lá e para cá e várias gargalhadas eram ouvidas dentro do camarim. Repentinamente a música cessava, abriam-se as cortinas e entrava o apresentador trajando um "flaker" preto e com uma voz rouca anunciava-se o início do espetáculo, sempre agradecendo nossa presença.

     O apresentador saia do palco, anunciando dois palhaços que entravam dando piruetas e muito tapas, caiam e levantavam-se constantemente, levando o público ao delírio de tanto rir.

     Aplausos e mais aplausos misturavam-se com gargalhadas e alguns assobios. Nossos corações ficavam disparados quando as trapezistas começavam a subir uma escada feita de corda, o silêncio era total até que elas se posicionavam lá no topo e começavam-se a balançar sem parar até que uma delas lançava-se no ar indo segurar a mão da outra. Sentia as mãos da minha namoradinha toda trêmula e suadas, encostávamos nossos corpos em sinal de apreensão e medo, batíamos palmas nervosamente e ficávamos aliviados quando tudo terminava. E novamente lá estavam os palhaços estapeando-se e risos, e gargalhadas ecoavam ao longo do circo. O espetáculo não durava mais que duas horas, mas para nós parecia que eram apenas alguns minutos. Ficávamos muito tristes quando os artistas despediam-se se curvando elegantemente para agradecer sob muitos aplausos e assobios.

     Fechavam-se as cortinas e nossos corações ficavam pequenininhos, era hora de voltar para casa comentando as principais atrações e combinando voltar no próximo final de semana para assistir o maior espetáculo da Terra. O circo, o circo da Periferia.

LIBERDADE

  Há tempos que venho sendo acordado pelo mavioso canto de um pássaro na velha jaqueira existente no quintal da casa onde eu moro. Acordava,...