Naquela
manhã do rigoroso inverno de 1962 parecia que o mundo ia acabar, o céu estava
muito escuro, prenunciando um enorme temporal. A luz da cozinha foi acesa,
ouvi barulho de água da torneira enchendo uma chaleira e o barulho de alguns
fósforos sendo acesos, era mamãe que sempre levantava bem mais cedo do que
todos nós para fazer os preparativos para o café matinal.
O barulho incessante do vento assoprando ruidosamente lá fora, fazia-me encolher na cama e sentir um pouco de medo do fim do mundo, que naquela época já existia alguns profetas anunciando que iria chegar. Pensava que aquele dia seria realmente o final e tudo estaria acabado. Nunca mais poderia jogar a minha querida bola de capotão com papai que ganhara no Natal, não poderia mais brincar com meus coleguinhas de “mão na mula”, bolinha de gude, rodar pião, pega-pega e outras brincadeiras da época, sentia-me muito triste em ter que partir não sabendo pra onde, realmente não estava preparado para o fim do mundo. O passarinho do relógio cuco anunciou seis cantos, eram seis horas. Papai levantou e dirigiu-se ao banheiro para sua ablução matinal, eu encolhi-me na cama um pouco mais e fiquei esperando ser chamado por mamãe para ir à escola.
O cheiro agradabilíssimo de café coado por mamãe invadia todos os cômodos da
casa e coloquei-me de pé rapidamente. Assim que papai saiu do banheiro eu
entrei para tomar banho e fiquei imaginando irmos para escola sob aquele
temporal que não demoraria muito a desabar. Mamãe apressou-me com alguns toques
na porta, saí e sentei-me preocupadíssimo a mesa para tomar café com rabanadas
que papai tanto apreciava. Naquele dia eu estava muito introspectivo, calado,
sério e todos notaram, mas continuaram a falar do cotidiano sem fazer
comentários a meu respeito.
Papai deu um beijo na mamãe, um beijo na minha testa e saiu apressado para o
trabalho debaixo de alguns pingos que começara a cair. Logo em seguida eu e
mamãe saímos para a escola. Iria ter aula de desenho e a professora Judite
deixou bem claro que quem não trouxesse lápis de cor não entraria na sala.
Chegamos na escola sob um forte temporal que começara a cair e mamãe abriu
minha mochila para ver se tudo estava certo, se não faltava nenhum material escolar
e repentinamente franziu a testa e fez uma cara de espanto e disse que eu tinha
esquecido a caixa de lápis de cor. Minha reação também foi de espanto, pois
tinha colocado os lápis na minha mochila e não sabia quem tinha tirado de lá.
Comecei a chorar baixinho e mamãe acalmou-me passando a mão no meu rosto e
dizendo que iria pegar os lápis em casa e voltaria rapidamente.
Entrei no pátio da escola, procurei os alunos da minha classe, entrei na fila,
cantamos o Hino Nacional e dirigimo-nos a sala de aula sob a supervisão da
professora. Sentamos todos educadamente, a professora fez a chamada e logo em
seguida distribuiu os desenhos que seriam pintados naquela aula. Quando ela
percebeu que eu não tinha lápis de cor, pediu gentilmente que eu aguardasse
mamãe do lado de fora da sala de aula.
Saí morrendo de vergonha e fiquei perto da porta aguardando eternos minutos o
retorno de mamãe. Foram momentos de angustia, perplexidade e medo. Às vezes
colocava o rosto numa pequena janelinha da porta e via todos os alunos pintando
alegremente e eu ali do lado de fora aguardando o lápis de cor. O vento gélido
no corredor, o barulho do trovão e os raios apavoravam-me e eu comecei a rezar baixinho para
que aquele momento cessasse o mais breve possível.
Avistei mamãe no final do corredor e corri até ela com os olhos marejados,
mamãe entregou-me a caixa de lápis de cor, beijou meu rosto e pediu
carinhosamente que eu entrasse na sala de aula rapidamente.
Pedi licença para
professora para entrar na sala e amaldiçoei-a mentalmente até chegar na
“carteira escolar”. Sentia-me culpado por ter feito mamãe ficar toda molhada e
eu comecei a pintar o desenho que acabou todo borrado por alguns pingos de
lágrimas de arrependimento e só então descobri o verdadeiro amor que uma mãe
nutre por um filho em todas as fases da vida.
Naquele dia chegando em casa dei um apertadíssimo abraço em mamãe e pedi a ela
“mil desculpas” e vários perdões. Ela sorriu angelicalmente e disse que não fizera
mais que uma obrigação de mãe. Não me contive novamente e deixei rolar algumas
lágrimas pela face. Deixei a mochila no sofá e fui almoçar, refletindo muito
sobre o ocorrido e prometendo que quando soubesse escrever contaria esta
“História”. Passaram-se somente cinquenta e oito anos e o sonho acaba de
concretizar-se, consegui escrever. Tá escrito. Lápis de Cor.