quarta-feira, 17 de abril de 2019

ESPÍRITO DE CACHACEIRO


Eu já vinha programando minha mudança para um local qualquer, pois eu estava morando com uma irmã num bairro para poder ir comprando uns móveis velhos para mobiliar meu novo lar.
Um primo disse que existia uma casa desocupada por um preço bem acessível e resolvi espiar a tal casa. Marcamos de ir ver a casa e a priori não achei muito bom, pela localização e por ficar no pé de um morro bem íngreme, mas para quem não tinha onde morar estava mais que bom.
Acertei o primeiro aluguel com o proprietário e fiquei de mudar no final daquele mês, mas uma irmã disse para eu mudar logo, afinal já tinha pago o aluguel e nada mais justo que ir morar na casa.
Uma sobrinha prontificou-se a levar-me até a casa e lá fomos nós, com apenas um colchão e algumas roupas de cama e lá me deixaram e foram embora me largando entre quatro paredes e o colchão jogado no meio do quarto.
Olhei as paredes carcomidas, fiquei parado na porta da cozinha vazia e na minha frente existia um enorme muro que dava impressão de estar em um presídio, mas não me abalei, afinal já tinha morado em locais bem mais aterrorizantes que aquele.
Tomei um demorado banho com um pedaço de sabonete que achei jogado em cima da pia e fui para o boteco tomar umas biritas para poder acalmar a alma. Após estar semi embriagado desci o morro e estiquei meus ossos no velho colchão que estava no quarto.
E assim os dias foram passando e três dias depois recebi um dinheiro e fui pegar minha mobília que tinha comprado com tanto esforço vendendo empadas.
Os poucos pertences foram colocados dentro de uma van e a mudança aconteceu e quando chegamos a minha nova residência o motorista da van e meu cunhado deram um tchau e foram embora, largando tudo na frente da casa. Fui até uma obra e pedi para os serventes se poderiam ajudar-me e imediatamente fizeram o transporte dos velhos móveis.
Vagarosamente fui arrumando os móveis nos lugares que achava que ficariam bem posicionados e fui ao mercado comprar uma caixa de cerveja bem gelada para comemorar o novo lar.
Comprei um frango assado para poder degustar com as cervejas e assim que abria uma lata de cerveja escutava o barulho de uma garrafa sendo aberta e a tampa caindo no chão fazendo barulho.
A primeira vez fiquei um pouco assustado, mas não dei muita “bola”, pois pensei que fosse o barulho da velha geladeira ou algum aplicativo do celular sendo acionado. Abri e segunda lata de cerveja e novamente o barulho da garrafa sendo aberta e a tampinha caindo no chão. Bebi um gole de cachaça e assim foi acontecendo, abria a lata de cerveja e escutava a garrafa sendo aberta e o barulho da tampinha em contato com o chão.
Aquele dia fui dormir um pouco tonto e pensando o que estava acontecendo comigo que a partir daquele momento estava escutando barulhos estranhos, também não liguei muito e joguei a culpa nas cachaças e nas cervejas.
Os dias foram passando e eu continuei bebendo cervejas e escutando o barulho da garrafa e era até engraçado, pois de tanto escutar o barulho dizia em voz alta: E aí espirito cachaceiro não vai oferecer desta cerveja não? Ria e abria mais uma lata de cerveja e os dias foram passando e todas às vezes que bebia cervejas lá aparecia a tal da garrafa sendo aberta com a tampinha rolando no assoalho.
Certo dia conversando com um vizinho ele me disse que aquela casa onde eu estava tinha morrido um rapaz de tanto beber, e o papo continuou e comecei a refletir o porquê do barulho da garrafa sendo aberta. Era o espírito cachaceiro!
Sabendo daquele fato pedi para o proprietário da casa que queria mudar de casa urgentemente e fui atendido e a partir daquele dia na nova casa nunca mais escutei a garrafa sendo aberta e a tampinha rolando pelo assoalho. O espirito cachaceiro tinha ficado na casa mal assombrada ou foi para algum boteco perto da residência beber umas lisas

UM OFFICE BOY NA CIDADE DE SÃO PAULO NA DÉCADA DE 70

                               

 


No ano de 1971, eu era um garoto que morava na periferia, tinha quatorze anos de idade, era pobre de nascimento e tinha apenas o ginásio incompleto, então não restava-me outra alternativa a não ser começar a trabalhar para levar a namoradinha ao cinema nos finais de semana e comer cachorro quente com tubaina na padaria do bairro com os amigos Israel e Luizão.
Papai levou-me até o endereço citado no minúsculo anúncio do jornal comprado no domingo, apertou o botão do elevador, desejou-me boa sorte e foi embora.
As pernas tremiam e o suor começou a descer pela testa, estava muito quente e eu muito nervoso. Desci no 21º andar, super enjoado pelo trajeto do elevador, o coração disparado e a carteira de trabalho em branco.
Apresentei-me à recepcionista um pouco trêmulo, inseguro, bastante ansioso, mas com muita esperança em conseguir a vaga e não decepcionar Papai.
Fiquei aguardando eternos minutos ao lado de jovens apreensivos, trajando roupas simples, denunciando-os que também eram moradores da periferia o que deu-me um pouco mais de tranqüilidade.
Fui chamado pela recepcionista que conduziu-me até uma sala onde existia alguns móveis estilo colonial, muitos telefones, uma enorme pintura de eucaliptos na parede e eu diante do Sr.Rubens, gerente de uma Cia.de Seguros, um senhor obeso, aparência de pessoa seríssima, honesta e rica, muita rica.
O odor agradabilíssimo do perfume do Sr.Rubens invadia a sala, sem pedir licença ao nosso olfato. Não sabia se olhava a sala ou o Sr.Rubens, estava encantado com tanto luxo e beleza, tão desconhecidos aos meus olhos.
O Sr.Rubens pediu-me educadamente para eu sentar numa poltrona estilo século XVIII, senti vontade de deitar, tamanho era o conforto, mas mantive-me ereto e atento. Pigarreou algumas vezes e dirigiu-me um olhar perscrutador, examinando-me dos pés a cabeça, muito sério e com uma voz grossa perguntou-me se eu conhecia as ruas do centro da cidade de São Paulo. Senti o meu rosto enrubescer-se de vergonha em mentir e respondi tartamudeando em poucas palavras que conhecia todas as ruas, sem exceção.
"Ah, se ele soubesse que eu mal sabia retornar para minha casa, no longínquo bairro da Cidade A.E.Carvalho, na zona Leste!" teria perdido o emprego, com certeza.
Após algumas perguntas sobre minha vida, minha família, meus estudos e certificar-se que eu realmente precisava trabalhar para ajudar meus pais, levantou-se e dirigiu-se a um armário, abriu-o,mexeu em alguns papéis e retirou uma maleta preta, estilo 007, caminhou em minha direção e depositou-a sobre minhas pernas e pediu-me para passar na Seção de Contabilidade e retirar o valor em dinheiro referente a duas passagens e ir para o Bairro da Lapa.
Deu-me o endereço e pediu que entregasse alguns papéis num escritório de advocacia, desejou-me boa sorte e sentou-se pesadamente na sua confortável cadeira e acendeu um charuto enorme.
Agradeci, pedi licença e sai um pouco atordoado com a mistura dos odores, do perfume e do charuto, transpirando e sem a mínima noção de onde ficava o Bairro da Lapa.
Tinha conseguido o emprego !
Peguei o dinheiro com a Dona Joana, uma senhora idosa, muito simpática e amável. Peguei a maleta 007 e sai um tanto orgulhoso e fiquei aguardando o elevador e pensando como faria para chegar até a Lapa."Onde ficava a Lapa? Era longe? Seria igual ao meu querido bairro da Cidade A.E.Carvalho?". Deixei de divagações quando escutei um som e acendeu uma lâmpada verde sobre a porta do elevador, abriu a porta do elevador e o ascensorista falou com uma voz irritada: Dessssce!
Fazia um calor insuportável, parei numa banca de Jornal na Praça Padre Manoel da Nóbrega e perguntei humildemente para o jornaleiro como fazia para chegar na Rua Coreolano no Bairro da Lapa. Explicou-me que deveria pegar um ônibus que vinha da Penha e passava na Rua XV de Novembro. Era o famigerado Penha-Lapa.
Fiquei esperando o ônibus por longos minutos embaixo de um Sol escaldante. Estava maravilhado com toda aquela movimentação: carros, ônibus, pessoas passando de um lado para o outro, guardas apitando incessantemente. Olhava para os prédios, olhava para os ônibus, para as pessoas e tinha vontade de chorar. Avistei o ônibus e fiz sinal para que o mesmo parasse e quando olhei mais atentamente fiquei estupefato, parecia que transportava toda a Metrópole, estava lotadíssimo!
Entre um empurrão e outro consegui com muito esforço subir os dois primeiros degraus, a porta fechou e fiquei prensado entre a porta traseira e um senhor muito gordo e suado. Senti vontade de descer no próximo ponto, devolver a maleta 007 para o Sr.Rubens e voltar para minha casa.Pensei:"Mas o que falaria para Papai? E a vergonha de não ser capaz de conseguir o emprego? Engoli algumas salivas, passei a mão pela testa suada e odiei o gordo, o onibus,o Sr.Rubens e Papai.Era necessário conseguir o primeiro emprego custasse o que custasse, então tinha que suportar aquele "inferno".
Procurei o endereço e encontrei-o com alguma facilidade, entreguei os papéis e peguei o ônibus de volta e cheguei depois de duas horas, muito amarrotado, cansado, suado, mas muito orgulhoso e feliz por ter cumprido minha primeira tarefa. Estava torcendo para ser dispensado e retornar no outro dia. Ledo engano! O Sr.Rubens pediu-me para ir para Vila Guilherme, numa transportadora e retirar algumas apólices de seguro, fazia parte do meu teste.
Novamente perguntei ao velhinho jornaleiro como fazia para chegar ao endereço, deu-me todas as instruções, peguei o ônibus no Parque Dom Pedro II, fui e voltei em menos de duas horas.
Entreguei as apólices para o Senhor Rubens. Olhou-me aprovadamente, deixou transparecer um sorriso de satisfação, apertou-me a mão e disse-me: Parabéns garoto! você começa a trabalhar amanhã, pode trazer todos os documentos que iremos registrá-lo. Ah, não esqueça de vir de terno e gravata!
Não contive-me de alegria, não sabia se sorria ou chorava, tamanha a minha felicidade e tristeza em encarar o Penha-Lapa de novo e ainda ter que usar terno e gravata. Nunca tinha usado terno e gravata em toda minha vida!
No dia posterior, cheguei meia hora antes, abandonado dentro de um terno azul claro e gravata vermelha que tinha emprestado do meu amigo Israel com a promessa de devolver nos finais de semana para ele ir à igreja e devolve-lo definitivamente assim que recebesse meu primeiro pagamento.
Dei todos os documentos para Dona Joana e ela apresentou-me o itinerário completo dos lugares onde deveria ir. Quase chorei em pensar em pegar trinta e dois ônibus lotadíssimos como aquele Penha-Lapa. Felizmente não era somente o Penha-Lapa, existiam outros ônibus menos lotados.
Peguei o dinheiro referente a trinta e duas passagens, a maleta 007, um guia da cidade e corajosamente fui enfrentar meu primeiro dia de Office-Boy. Passei nas Lojas Americanas da Rua Direita para comprar algumas balas e doces e fui pegar a primeira condução na Praça Clóvis Beviláqua.
Meu trabalho consistia em retirar algumas apólices de seguro em transportadoras em doze bairros diferentes. Alguns bairros eram tão distantes que minha memória já não os alcançam mais.
Naquela época já existia grandes enchentes na cidade e lembro-me atravessando a Av. Brás Leme com a maleta preta 007 do Sr.Rubens sobre a cabeça, pois se deixasse molhar os documentos era demissão na certa.
No começo foi muito difícil, mas com o passar dos dias tudo tornou-se uma grande aventura. Encarava tudo aquilo como uma grande diversão e tudo era motivo para festa, pois adorava ver as pessoas andando apressadamente e era com muita alegria e entusiasmo que contava a meus amigos da escola as aventuras do cotidiano. Estudava no período noturno no Ginásio Estadual Cidade de Hiroshima, no Parque do Carmo, em Itaquera.
Foi meu primeiro emprego e orgulhava-me em trabalhar no centro da maior cidade da América Latina. Adorava jogar Fliperama, pegar as seções da tarde nos antigos cinemas do centro, às vezes parava para observar os "cantadores", e ilustres "trovadores", Homem da cobra vendendo suas milagrosas pomadas para todas as enfermidades do Mundo na Praça da Sé e comer o tradicional sanduíche de churrasco grego no Largo Paiçandu, que ficava o dia todo rodando, rodando, assim como nós office boys daquela época.
Sentia muito orgulho em ser paulistano e foi minha primeira grande paixão pela cidade de São Paulo, depois viriam outras. Era um sofrimento gostoso, de estar sendo útil, de poder ajudar minha cidade, de ver e sentir novos lugares, novos aromas, novas pessoas, mas nenhum dia era igual ao outro, sempre tinha novidades. Imaginem que nós oficce boys chegávamos a promover um campeonato de futebol em pleno Pátio do Colégio com juiz, torcida e muita alegria. Era simplesmente maravilhoso!
Muito obrigado papai, muito obrigado Sr.Rubens, muito obrigado São Paulo por dar-me a oportunidade de tornar-me homem, responsável, destemido e acima de tudo um cidadão que aprendeu a amar essa cidade desde aquela época e continuar amando-a até os dias de hoje.

LIBERDADE

  Há tempos que venho sendo acordado pelo mavioso canto de um pássaro na velha jaqueira existente no quintal da casa onde eu moro. Acordava,...